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Alucinações fantasmas -- Capítulo 6 -- Érebus.




O Peugeot parou junto ao meio-fio em frente à casa de Diana; Ângelo desligou o motor, retirou a chave da ignição e os dois ficaram imóveis sentados dentro do carro sem falar palavra alguma por alguns minutos, ambos olhando para o vidro frontal do veículo como se estivessem esperando ver algo diferente nele.
Diana estava confusa, ainda queria entender exatamente o que tinha ocorrido naquela noite, mas não tinha informações suficientes em sua jovem experiência de vida que pudesse lhe proporcionar uma explicação qualquer. Ela nunca achou que presenciaria algo como aquilo que o namorado havia demonstrado.
Diana nunca teve qualquer opinião formada sobre a existência de fatos de cunho sobrenatural do tipo premonições, visões do futuro ou qualquer tipo de outra manifestação desse nível. Ela considerava que muito provavelmente um número bem pequeno, para não dizer minúsculo, de pessoas ao redor do mundo poderia, de fato, ter potencial para manifestar habilidades ou atrair fenômenos como os descritos e estudados pela parapsicologia. Fenômenos como precognição ou premonição, clarividência, psicocinese, retrocognição, telepatia, simulcognição e piroscinese. Mas ela cria que aquilo na verdade era irrelevante, nunca deu qualquer valor a informações sobre qualquer coisa ligada a paranormalidade quando via reportagens a respeito do tema vez por outra na televisão.
Agora ela estava reconsiderando aquele paradigma que tinha desde que se entendia por gente; havia acabado de ser testemunha ocular de um fato que se tivesse sido relatado por qualquer pessoa, ela diria se tratar de uma boa invenção. Mas vira e ouvira com seus olhos e ouvidos o namorado falar em alto e bom som que um acidente estava para acontecer e logo em seguida o fato ocorreu.
Diana virou a cabeça e olhou para Ângelo que permanecia sentado olhando de maneira dispersa à frente do veículo, ele respirava de uma forma calma e o semblante estava tranquilo, nem parecia ter se dado conta de que havia evitado que um homem fosse morto pelo fogo causado pelo contato da gasolina com o cigarro aceso em algum ponto debaixo do carro batido.
Finalmente Ângelo olhou para ela com uma expressão suave na face, os cenhos arqueados, a testa levemente enrugada e os lábios tão apertados que pareciam formar apenas um pequeno risco abaixo do nariz. No fundo ele estava ansioso para saber o que a namorada estava pensando, mas não ousava dizer nada, porque não sabia o que falar.
Diana percebeu a inquietação disfarçada no olhar dele e retribuiu com um olhar complacente e carinhoso, em seguida passou a mão pelo rosto dele. Estava tudo bem; ela ainda não conseguia entender absolutamente nada do que havia ocorrido, mas realmente estava tudo bem.
_ Você tem uma explicação para isso?_ perguntou ela.
Ângelo balançou a cabeça negativamente.
_ Não.
Ele achava aquela mulher a mais magnífica do mundo, sentia-se abençoado por tê-la ao seu lado, mas ao mesmo tempo sentia uma extrema vergonha por não ter sido capaz de compartilhar seus segredos mais íntimos com ela antes de ter de mostrá-los de uma forma tão abrupta.
_ Desculpe não ter contado antes.
_ Você não precisa se desculpar, eu também teria escondido uma coisa como essas, quer dizer, é algo espetacular e você tem de ter muito cuidado ao falar disso.
_ Nunca falei com ninguém a esse respeito.
_ Ninguém?_ Diana pensou que ele pudesse ter compartilhado com os pais e com alguns amigos mais íntimos.
_ Jamais conversei nem revelei para nenhuma pessoa.
_ Nem seus pais?
_Não. Foi isso que eu estava tentando dizer no carro desde a hora em que saímos do shopping.
_ Como conseguiu esconder algo assim por tanto tempo sem que nenhuma pessoa pudesse perceber que tinha algo estranho sendo omitido?
Ele pensou um pouco antes de responder, já que estava revelando tudo resolveu ir em frente sem reservas, não tinha certeza de que conseguiria fazer, mas ia tentar. Ele respondeu:
_ Não foi difícil; não me lembro de qualquer coisa desse tipo acontecendo comigo durante a infância, exceto umas poucas sensações que não revelavam nada sério, sempre foi algo como um Dèjá vu, não me incomodava, era só uma percepção leve. Na adolescência foi parecido, tive poucas sensações sobre pessoas, lugares, objetos e situações, mas nada relevante, nada que pudesse me dizer como e onde salvar a vida de outro ser humano. Entende?
_ Então como aconteceu?
Ângelo passou a mão sobre a testa como que para tirar uma camada de suor recém formada, mas não havia suor algum na testa, foi uma reação mais mecânica do que qualquer outra coisa.
_ Alguns dias antes do que aconteceu no parque, eu acordei com o pressentimento de que algo diferente ia acontecer comigo, no princípio eu não podia imaginar o que seria, mas ignorei porque essas sensações sempre sumiam depois de um tempo. Sabe, como a fumaça criada por um fósforo riscado; ela dança e desaparece. Comigo era semelhante. Efêmero.
_ E então?_ Diana estava curiosa.
_ Então, no dia em que salvei Ingrid eu só sabia que deveria estar no parque e que lá teria de fazer uma coisa, não imaginei que essa coisa fosse salvar uma garotinha que ia cair de um brinquedo com defeito. Pensei que eu ia ver algo acontecer, sei lá, alguma coisa qualquer. Nunca imaginei que eu seria o agente principal a ser guiado para dentro daquele brinquedo.
Ela tentou mostrar-se compreensiva, afinal, aquilo era algo totalmente fora dos padrões; e enquanto falava sua mente ainda fazia giros e mais giros em busca de uma explicação que teimava em não surgir.
_ Agora ouço uma voz, hoje foi estranho, mais forte, mais alta do que da última vez.
Os olhos de Diana se arregalaram sem que ela percebesse.
_ O que essa voz disse? Você conseguiu compreender bem?
_ Sim, mas pareceu um trovão; falou que um acidente ia acontecer ali e que uma pessoa ia morrer.
_ A voz não mandou você salvar a pessoa?
_ Literalmente não, mas creio que estava implícito, senão, porque revelar algo como isso?_ Ele continuava coçando a testa.
Diana se recostou novamente no banco do carro e voltou a olhar o pára-brisa. Falou de modo vago:
_Será que você mudou o destino daquele homem?
Ângelo não acreditava em destino nem ia se deixar levar por um debate tão complexo sobre desdobramentos e interrupções de algo que já estava traçado previamente para a vida daquele homem, mas se limitou a responder:
_Não sei.
Ela emendou:
_ Não sei o que dizer, isso é surreal, você sabe o futuro antes dele acontecer; mesmo sem saber direito o que isso significa só posso pensar que é uma coisa boa.
Ângelo não coçava mais atesta, mas apertava com os dedos os olhos fechados como que para espantar uma possível dor de cabeça.
_ Não. Diana, não posso saber coisa alguma antes de acontecer; isso não é uma constante, acontece somente às vezes, não tenho controle. E isso me amedronta um pouco.
Ela o olhou novamente; ele também a estava encarando. Ele continuou:
_ Entende agora porque eu nunca fiquei à vontade quando as pessoas me reconheciam nas ruas ou me elogiavam sem mais nem menos. Eu não sei se sou eu que faço essas coisas.
A curiosidade e o entusiasmo crescente que estavam visíveis na face de Diana desapareceram momentaneamente.
_ Como assim? O que você está querendo dizer? Vi você puxar aquele homem de dentro do carro batido hoje e uma multidão de gente viu você pendurado nas ferragens da roda gigante para salvar a vida de uma menina. Não estou entendendo. É claro que é você quem faz essas coisas.
_Eu sei disso, eu fiz essas coisas, mas se não houvesse algo diferente em mim, nunca teria feito nada disso. Não sei se sou eu mesmo quem produz essa sensação ou se existe algo maior agindo em nosso redor, algo que por algum motivo eu consigo captar. E tem mais. Por que Ingrid e esse homem hoje? Por que não outra pessoa qualquer? Por que tanto tempo depois ou por que não antes? Entende o que quero dizer. Passo por centenas de pessoas todos os dias e nada acontece. Porque esses em particular? O que eles têm de especial? O que eu tenho de especial?_ lembrou novamente do homem no parque de diversões; por mais que se esforçasse não conseguia esquecer a face dele nem o que foi dito.
Diana respirou fundo e pesadamente tentando ganhar tempo para encontrar alguma coisa para dizer que fosse confortante para o namorado, ela entendia as dúvidas dele, e compreendia também que era necessário uma dose muito grande de cautela ao se afirmar qualquer coisa. Ela falou:
_ São muitas dúvidas_ ela mantinha uma face indiferente_ e as possibilidades de resposta devem ser infinitas.
_ Compreende agora a causa de eu estar sempre na defensiva com isso; não me sinto herói coisa nenhuma. Heróis são os bombeiros que levaram aquele homem acidentado hoje para o hospital, heróis são os soldados brasileiros em missão fora do país, em lugares como o Haiti, ou cada pessoa que tenta viver uma vida descente nesse país que os explora cada vez mais. Fico profundamente incomodado quando Heloi ou Patrícia dizem que sou o anjo da guarda de Ingrid._ Ângelo já tinha visto em algumas oportunidades os pais da menina o apresentarem para amigos e conhecidos dizendo exatamente aquilo: “Esse é Ângelo, o anjo da guarda da minha filha”. Para ele aquilo era terrível.
Diana deu de ombros.
_ Não sei, mas acho que isso é uma coisa boa._ ela sempre teve bons olhos, enxergava tudo em seu redor de uma forma agradável.
Ele refutou:
_ Não é. Essas pessoas têm uma expectativa monstruosa depositada sobre meus ombros, você não vê? Eles esperam muito de mim e não sei se posso corresponder todo o tempo; e depois que apareci em jornais e tudo aquilo aconteceu eu sinto que mais pessoas começaram a me olhar dessa forma, pessoas que nem conheço. Você viu as meninas na lanchonete do shopping? E quanto à pequena Karen e seu pai? Até você passou a me olhar dessa forma.
Diana baixou os olhos, tentou identificar se tinha realmente feito aquilo, procurou ser muito sincera consigo mesma, mas não conseguiu notar mudança alguma no seu comportamento com relação a ele depois dos acontecimentos que o tornaram uma celebridade local, exceto pelo orgulho que havia aumentado, por ser a namorada dele. Pensou em negar imediatamente a afirmação feita por ele, mas achou mais prudente fazer uma análise introspectiva mais acurada.
Ele continuou o discurso com um certo tom de tristeza na voz. Não estava triste pelas pessoas que o tratavam de modo diferenciado, mas sim com ele próprio que temia não ser capaz de corresponder a todo aquele carinho e por vezes admiração.
_E se um dia eu falhar? E se eu falhar com você? E se falhar com a Família de Ingrid ou com qualquer outra pessoa que conheça a história e tenha me idealizado como um herói de verdade? Ou pior. E se um dia eu tiver uma dessas sensações ou ouvir essa voz apenas para ser levado a uma situação que eu não possa resolver? Alguém que eu não possa salvar._ Quase não pronunciou direito a última frase.
Desde que salvara Ingrid, Ângelo teve, poucas vezes, um sonho repetido, na verdade era mais como um pesadelo e nesse sonho ele sempre falhava ao tentar salvar uma mulher, não sabia quem era porque não conseguia ver o rosto dela, mas o desespero daquela vítima pedindo ajuda era algo tão perturbador que só a lembrança era suficiente para fazê-lo tremer por dentro. Todas as vezes que sonhou aquilo ele acordou transtornado porque no sonho ele via a mulher morrer sem o socorro que ele devia dar, mas por algum motivo não dava, na verdade, era como se ele mesmo a estivesse atacando e era isso o que mais o amedrontava. Ele não contou sobre o sonho para a namorada, guardaria consigo por mais algum tempo e revelaria dependendo de como ela reagisse às descobertas iniciais. Precisava ter certeza de que Diana compreendia totalmente os sentimentos dele com relação a todos aqueles fenômenos.
Diana não tinha nada com que argumentar, resumiu-se a dizer apenas:
_ Essas pessoas acreditam em você e eu acredito em você. Agora; você mesmo precisa acreditar. Talvez essa coisa passe, talvez não signifique nada.
Ele virou o rosto para o vidro da janela ao seu lado, não estava fugindo de Diana, mas não tinha certeza de muitas coisas. A namorada continuou com mais uma frase:
_ Talvez você realmente tenha um dom especial.
Ele não disse nada, a visão estava perdida em algum lugar fora do carro.
Naquela noite eles tinham ficado no lugar do acidente até que o carro do serviço de resgate do corpo de bombeiros chegasse, foram muito rápidos em toda a ação; rapidamente imobilizaram o acidentado que estava deitado no chão longe das labaredas que consumiam toda a lataria do carro batido. Levaram-no para a ambulância e procederam com a remoção imediata do acidentado para a unidade médica de referência da região, o HGNI ou Hospital Geral de Nova Iguaçu, mais conhecido como hospital da Posse, por ficar localizado num bairro com esse mesmo nome, muito próximo da rodovia Presidente Dutra, BR 116, que faz a ligação entre os estados do Rio de Janeiro e São Paulo.
Lá o homem desacordado que, segundo a equipe de socorro, demonstrava um quadro de traumatismo craniano e diversas fraturas nos membros inferiores seria atendido de modo mais completo. O mais importante era que ele estava vivo e se não tivesse sido retirado do automóvel o fogo também o consumiria antes que o socorro pudesse sequer ser acionado.
Uma segunda equipe com três combatentes ficou encarregada de extinguir com o fogo enquanto que um dos bombeiros perguntava a Ângelo se ele tinha assistido o que aconteceu.
Ângelo disse que estava passando pela rua quando viu o carro que parecia ter perdido a direção bater contra o poste de concreto. Na versão que ele relatou, disse que ao ver o choque, parou seu veículo deixando Diana dentro do automóvel encarregada de telefonar pedindo ajuda e foi socorrer o motorista que parecia desacordado. Foi só isso; Ângelo torceu para que nenhuma pessoa o reconhecesse como sendo o homem que salvou a menina no parque, não queria mais um salvamento sendo atribuído a ele, não tinha nascido para heroísmos, era apenas uma pessoa com um dom diferente tentando entender seu propósito num contexto aparentemente maior.
_ Só sei que foi incrível_ disse Diana recuperando o ânimo na fala_ literalmente incrível, você sabia que ia acontecer._ novamente havia um entusiasmo moderado nas palavras dela.
Ele soltou uma respiração mais forte como se houvesse muito ar represado nos pulmões tentando abrir espaço pelas vias aéreas rumo à liberdade.
Ângelo não sabia mais o que dizer, estava confuso, nunca tinha revelado aquilo para ninguém e talvez não tivesse tido coragem de contar para ela se a situação fosse outra. Porém, entendia ao menos em parte o entusiasmo da namorada.
Ele sentia-se completamente desprotegido, seu segredo mais estranho, incompreensível e antigo agora seria partilhado com outra pessoa e como aquilo nunca tinha acontecido ele ficou um pouco desconfortável, embaraçado.
Sem saber o que falar, ele apenas concordou:
_Eu sabia._ disse aquilo como se tivesse sido vencido numa contenda; mais expulsou as palavras do que pronunciou.
_ Acho que devemos conversar mais a respeito?_ Diana sentia que precisava oferecer apoio, não sabia bem como fazer isso, mas era seu dever.
_ Sinto que devo, mas não sei mais o que te dizer.
Ela segurou a mão dele. Estava fria.
_ Vamos lá pra dentro, não podemos dormir no carro. _Ela sorriu com uma facilidade que o encantou. Ele percebeu que a face iluminada de Diana tinha ajudado a dissipar as sombras que cercavam o coração dele com uma enxurrada de dúvidas.
Havia uma sensação pairando no ar, mas ele não conseguia identificar o que era.
Só naquele momento ele voltou a se dar conta de que estavam ainda sentados no interior do Peugeot. Ângelo pretendia apenas deixar a namorada em casa e voltar para a sua depois daquela excelente tarde que passaram juntos no shopping, mas as coisas tomaram outro rumo e agora ele se via na eminência de tentar dar uma explicação mesmo que fosse a mais estapafúrdia que pudesse. Ângelo mesmo não tinha respostas para todas as perguntas que ela provavelmente faria; Diana era inteligente e possuía uma mente aguçada e curiosa.
A casa de Diana tinha um muro alto com aproximadamente dois metros de altura, um pouco mais; não era possível ver a residência escondida por detrás dele, era adornado com telhas de cerâmica avermelhadas colocadas cuidadosamente, elas formavam uma espécie de chapéu sobre o muro de um lado até o outro.Havia apenas um grande portão retangular de alumínio por onde poderia passar um carro e, dentro desse retângulo havia uma porta que era usada normalmente para dar acesso a casa no caso de não estarem usando o carro.
Diana saiu do Peugeot e sacou de sua bolsa uma chave, com ela abriu o portão menor e entrou fechando-o em seguida. Enquanto isso Ângelo manobrava o veículo de forma a colocá-lo atravessado na rua e de frente para o grande portão de alumínio que se abriu correndo lateralmente sobre dois pequenos trilhos com Diana empurrando. O carro avançou e subiu a calçada por uma rampa de acesso até a garagem onde o carro da namorada permanecia parado e protegido, visto que era uma garagem para dois carros e coberta.
Ângelo por um momento teve a impressão de que o carro dela, um Ford Fiesta 2007 preto, nada mais era do que uma grande massa amorfa em suspensão, mas logo que a luz dos faróis do seu carro iluminou o outro a ilusão se desfez imediatamente. O motorista piscou os olhos algumas vezes, devia estar apenas cansado.
Diana fechou o portão de garagem e trancou tudo, Ângelo desligou o carro e retirou as sacolas contendo o que tinham comprado no shopping. Ao fundo da garagem havia uma porta de grades que era a entrada para a casa; ambos entraram.
A porta dentro da garagem levava a uma espécie varanda fechada onde máquina de lavar e secadora de roupas estavam encostadas na parede do lado esquerdo. Ao lado delas outra porta dava acesso a uma cozinha pequena que era seguida pela sala na qual havia uma escada levando para o andar de cima onde ficava o quarto e o local de trabalho da dona do lugar.
Diana morava sozinha há dois anos e montou um escritório em princípio com a ajuda dos pais, para poder exercer sua profissão de design gráfica, embora primeiro tenha feito a faculdade de Direito e somente depois de concluída passou a estudar design que era uma de suas paixões. Ela não chegou a prestar o exame da OAB embora esse ainda fosse um dos sonhos do pai dela.
No começo quase não apareciam trabalhos para ela e os poucos que surgiam não eram satisfatórios no que dizia respeito à parte financeira. Alguns meses depois ela foi contatada por uma editora que vira um de seus trabalhos na internet e desejava utilizar como imagem de capa para a versão traduzida de um livro estrangeiro cujos direitos a editora havia acabado de negociar. Aquele foi o primeiro grande negócio de Diana que passou a trabalhar como “freelancer”, em seguida ela teve a idéia de passar a criar capas personalizadas para jovens escritores e anunciando seus trabalhos pela internet conseguia vender capas já prontas ou criava algumas sob encomenda e a demanda foi espetacular.
Agora Diana estava trabalhando com uma fila de espera de duas semanas, trabalhava sozinha mais era, além de talentosa, muito organizada e dedicada ao serviço, porém sempre que conseguia fazer uma boa venda de capa para algum jovem escritor ou qualquer bom serviço extra ela se permitia um pequeno prêmio motivacional, geralmente era a compra de alguma coisa que desejava e foi exatamente aquilo que tinha feito no shopping com o namorado naquele dia. Aprendera a técnica de se auto presentear numa palestra motivacional voltada para profissionais liberais. Gostava dessas coisas, palestras, cursos e “work shops”. Costumava participar de tantos quantos pudesse e cria que todo aquele conhecimento que adquiria estava realmente fazendo a diferença em sua carreira.
Para o futuro ela estava pensando em ampliar ainda mais o seu raio de ação, quem sabe criar uma pequena agência de design; a internet era uma ferramenta formidável para negociações, fechamento de trabalhos e com certeza a ajudava muito, mas ainda estava em fase de estudo quanto às novas oportunidades que se abriam.
O pai de Diana, Dr. Maurício Moura Lima, insistia que ela devia ter um escritório mais formal localizado em algum endereço comercial; ele era um advogado bem sucedido, ex-vereador do município de Mesquita e muito reticente quanto à forma virtual da filha trabalhar; ele mantinha seu escritório jurídico no centro do município já há mais de trinta anos e mesmo quando cumprira os quatro anos de mandato legislativo na câmara ainda manteve aberto o escritório que ficou a cargo da esposa também advogada. Diana não queria, ao menos naquele momento, um escritório em alguma sala comercial do centro de Mesquita pelo simples fato de que isso fatalmente acarretaria em despesas fixas mensais, mas não era certeza de aumento de receita na mesma proporção. Ela preferia manter seu “Home Office” que era funcional e sem nenhum custo extra. 
Já a mãe de Diana, Janete Alves Lima, era muito mais favorável ao modo de trabalhar da filha e deu o máximo apoio desde a criação do escritório em casa até uma pequena ajuda financeira para anúncios na internet a fim de começar a alavancar os negócios.
O dinheiro que entrava com as vendas sob encomenda de trabalhos de todos os tipos estava sendo mais do que suficiente para se manter mensalmente e ainda restava um pouco para guardar e investir.
Ângelo já tinha dormido na casa da namorada pelo menos duas vezes, portanto tinha algumas roupas lá que nunca se lembrava de levar para a sua casa, mas serviam para emergências como aquela. Todos ao redor de Diana sabiam que seu início de carreira bem sucedido era fruto de talento, organização, foco e trabalho. Os quatro pilares de sua vida.
_ Você quer comer alguma coisa?_ Diana estava fechando a porta.
_Sabe._ disse Ângelo_ Eu estou bem cansado. Não quero nada. Obrigado.
Ela sorriu tentando ainda desanuviar o clima que tinha ficado nebuloso com a conversa no carro. Disse:
_ Você puxou um cara bem maior que você para fora de um carro batido, tinha mesmo que ficar cansado.
Ele concordou balançando a cabeça, mas o cansaço que estava sentindo não era físico, mas sim mental; Ângelo sentia um peso enorme nos ombros e na base do pescoço, estava com dor de cabeça e com a boca seca.
_ Vou beber água, tomar uma ducha e dormir, amor.
Diana pareceu um pouco contrariada, queria saber mais sobre todo aquele negócio de adivinhar as coisas que ainda não tinham acontecido; poderia passar a noite toda formulando perguntas, mas ficou impassível e apenas disse:
_ Não quer conversar?
Ângelo estava tentando fugir de uma conversa da qual não teria controle algum, Diana queria respostas que ele não tinha, mas não estava fingindo, só queria que o dia acabasse e um bom sono certamente faria muito bem para ele e seus pensamentos. No dia seguinte talvez tivesse mais condições de falar a respeito.
_ Amanhã conversamos Diana, minha cabeça está me matando. E ainda tenho que ligar para casa e tentar explicar que vou passar a noite aqui.
_ Vai contar sobre o acidente?
_ Não.
_ Acho que devia.
_ Por quê?_ Ângelo se mostrou surpreso com o comentário dela.
_ Ora; são seus pais. Se eu tivesse um filho ia quere saber se ele andasse por aí tirando gente de carros batidos e salvando menininhas em parques de diversões._ Diana não fazia por mal, mas estava tentando dar um jeito de trazer o assunto à baila novamente para extrair qualquer informação extra que pudesse satisfazer sua curiosidade.
_ Você sabe como eles sãos, já foi terrivelmente difícil fazer principalmente minha mãe aceitar que salvei Ingrid do jeito que foi, ela só conseguiu ouvir que eu fiquei pendurado no brinquedo e expus minha vida a risco, passou mal, foi um desastre. Se eu contar qualquer coisa desse tipo ela vai ficar horas e horas querendo saber absolutamente tudo sobre o fato e ainda vai querer me dar alguma lição de moral, dizendo que eu fico por aí bancando o salvador do mundo. Não Diana, hoje eu só quero dormir em paz; amanhã penso com calma se conto para eles.
Aos olhos da namorada pareceu um bom argumento.
Diana foi tomar banho enquanto ele ligava para casa a fim de informar aos pais que ia dormir na casa da namorada.
Ângelo, aos 30 anos morava com os pais e um irmão mais novo, de 24 anos, Luis Miguel dos Santos; em um apartamento tradicional no centro de Nova Iguaçu. Aliás, a palavra tradicional servia muito bem para caracterizar a família dele.
Tanto o pai, Luis Roberto dos Santos; quanto a mãe, Ana Maria Aparecida dos Santos eram professores universitários a vida toda. Eles ainda trabalhavam e amavam o que faziam; lecionar era para cada um deles como empurrar o mundo centímetro por centímetro, às vezes, milímetro por milímetro para uma realidade melhor. A mãe dele ensinava matérias relacionadas à língua portuguesa e o pai, matérias da área Contábil.
Após explicar que passaria a noite na casa de Diana; Ângelo desligou o telefone e ficou sentado no sofá da sala aguardando e tentando expurgar a insistente dor de cabeça que o dominava.
A namorada reapareceu trajando um roupão bastante felpudo, branco com uma faixa enrolada na cintura; também trazia uma toalha.
_ E então, falou com eles?_ perguntou_ O que disseram?
Ainda encostado no sofá, com o corpo totalmente voltado para trás, sobre o encosto acolchoado, com os olhos fechados e ambas as mãos na testa ele respondeu:
_ Está tudo certo._ Mantinha os olhos cerrados porque a luz estava incomodando a visão e aquele estímulo tinha uma resposta cada vez mais forte em forma de dor atrás dos olhos, dentro da cabeça.
Diana entregou para o namorado a toalha que trazia.
_ Tome um bom banho e venha para o quarto, estou achando mesmo que você precisa de uma boa noite de sono. Vou preparar tudo.
Ela subiu e deixou Ângelo sozinho na sala, ele tentou levantar, mas sentiu uma leve tontura que fez com que tudo a seu redor parecesse ter ficado repentinamente inclinado.
Havia uma sensação indecifrável pairando no ar.
Ele tentou interpretar aquela sensação que novamente era semelhante à de um Dèjá vu, algo muito familiar, mas ao mesmo tempo não parecia ser tão claro assim. Havia alguma coisa acontecendo com ele, alguma coisa subliminar que em parte era perceptível e em parte não.
Foi para o banheiro logo que a tontura parou; entrou e fechou a porta. O banheiro pequeno tinha o box do chuveiro, a pia com o armário logo acima em cuja frente havia um espelho. Sobre a pia estavam alguns perfumes, loções e óleos corporais que Diana costumava usar, além de frascos de cremes e sabonetes líquidos.
Ângelo tirou a camisa e abriu a torneira, jogou a camisa sob um suporte para roupas atrás da porta e inclinando-se para lavar o rosto ajuntou com as duas mãos em forma de concha a água que caía da torneira. Jogou a água no rosto sentindo um alívio quase que imediato de sua dor de cabeça.
Refez o gesto mais duas vezes sem nem perceber que aquilo era praticamente desnecessário visto que ia se enfiar embaixo do chuveiro, mas tinha por costume, ou talvez fosse algum tipo de mania, molhar o rosto na pia mesmo antes de tomar banho. Ele ficou um tempo debruçado sobre a pia e de olhos fechados enquanto a água pingava do rosto. Quando finalmente abriu os olhos e se aprumou Ângelo tomou um enorme susto.
A imagem refletida no espelho não era a dele, viu o rosto de outra pessoa, um rosto sorridente e terrivelmente medonho. Com um sobressalto ele esbarrou em todos os potes de óleos, loções e perfumes sobre a pia, fazendo com que praticamente todos caíssem com um barulho alto, provocado pelo contato dos potes contra o chão recoberto por ladrilhos. Por sorte nenhum deles se quebrou.
Ele andou para trás, o coração disparado, e ouviu a voz de Diana perguntando o que tinha acontecido.
_ Está tudo bem aí?_ ela disse de fora.
Ângelo olhou para a porta fechada como se pudesse enxergar através dela, sabia que a namorada estava parada do outro lado demonstrando preocupação. Voltou o olhar para o espelho e a única imagem lá era a sua própria.
_ Ângelo!?_ Diana estava mesmo preocupada. Ela bateu na porta algumas vezes porque não estava obtendo resposta.
Confuso com a visão que acabara de ter, ele pensou o mais rápido que pôde.
_ Está tudo bem, amor, só derrubei algumas coisas. Só isso._ Tentou fazer com que a voz não demonstrasse o grau de confusão que havia se formado dentro dele. Olhou novamente para a porta e em seguida para o espelho. Apenas seu reflexo exatamente como tinha de ser.
Diana falou além da porta fechada:
_ Nossa cama já está pronta.
_Já estou indo._ estava tão nervoso que nem se deu conta de que ainda faltava tomar o banho.
A torneira continuava derramando água que se perdia pelo ralo como se o líquido não tivesse valor algum. Ângelo passou a mão pelo rosto, o susto foi tão grande que a cabeça quase não doía mais. Tentou se acalmar.
A visão tinha sido muito real, não havia dúvida alguma de que ele vira um rosto sorridente que o encarava com curiosa felicidade. Respirou fundo e tentou entender o que estava se passando.
_ O que está acontecendo?_ balbuciou. Não diria aquilo para Diana, ela poderia achar que ele estava ficando louco.
Quando finalmente saiu do banheiro, depois de um banho rápido que não foi suficiente para relaxar e ainda pensando na visão assombrosa que teve no espelho. Ângelo foi para o quarto onde a namorada estava deitada sobre a cama e assistindo televisão, o ventilador estava ligado produzindo uma brisa suave e confortável.
Diana bateu com a palma da mão na cama a seu lado chamando-o para se deitar ali. Embora morasse sozinha, Diana fez questão de colocar uma cama de casal no quarto, assim tinha muito mais espaço para se virar e rolar durante a noite, além do que, na visão dela uma cama maior dava um ar mais independente ao cômodo. Transmitia uma mensagem de que quem dormia ali era uma mulher auto-suficiente e não uma menina.
Ela já tinha preparado a cama para receber o namorado, havia um travesseiro extra ao lado do usado por ela e também um conjunto de cobertores dobrados a seu lado.
_ Vem deitar._ disse_ Acho que uma boa noite de sono vai ser o suficiente para recuperar nossas energias.
Um relógio de cabeceira colocado no console lateral da cama mostrava que ainda não passava de meia-noite e Diana assistia o último jornal da programação da emissora antes do programa de entrevistas de Jô Soares.
Com um pouco de receio e tentando parecer o mais normal possível, Ângelo contornou a cama e se sentou ao lado dela, ainda sentindo aquele persistente Dèjá vu pairando sobre sua cabeça e com a face estranha que o viu no banheiro também assombrando sua mente.
As coisas estavam muito diferentes, várias sensações estranhas juntas, e outras que ficavam o tempo todo escapando de sua percepção. Fosse aquilo o que fosse; ele estava começando a pensar que algo vinha em rota de colisão com ele, sua vida poderia perder o sentido ou ser afetada por algo que ele não conseguisse conter. Lembrou novamente do sonho e dos gritos aterrorizantes de socorro que a mulher pedia sem sucesso.
Estremeceu por dentro só de pensar que por algum motivo alheio à sua compreensão tudo aquilo podia estar interligado. Olhou para Diana que se mantinha recostada e com os olhos brilhantes ainda fixados nas reportagens exibidas pelo jornal televisivo; não parecia preocupada com coisa alguma, mas sim totalmente relaxada.
Ele por outro lado mantinha-se absorto nos pensamentos escuros que brotavam dos lugares mais escondidos de sua mente. E se aquele não fosse apenas um sonho comum, mas sim uma projeção de algo que de fato ia acontecer? Tal como a menina no parque e o homem na estrada. E se aquela mulher fosse Diana? Não podia sequer pensar naquilo.
De repente, na mente de Ângelo foi como se uma sombra enorme estivesse abrindo suas imensas asas obscuras e com isso roubado toda a luz que havia antes. Era uma péssima sensação.
Mas o pior ainda estava por vir e começaria naquela madrugada.


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Na primeira vez que me deparei com esse conceito achei que não fazia sentido, mas a verdade, por mais estranho que possa parecer, é que grandes escritores não estudam gramática, eles se preocupam muito pouco em escrever perfeitamente ou de maneira erudita, respeitando e seguindo todas as regras gramaticais; isso acontece porque eles entendem que precisam usar seu tempo e energia para desenvolver algo que para eles é muito mais importante e relevante do que a gramática. E o que seria isso? A própria escrita.   Escritores estudam escrita . Professores e linguistas estudam a gramática; e por mais que exista uma proximidade entre eles, na medida em que ambos manuseiam as letras e as palavras de alguma forma, a arte do escritor não está em conhecer profundamente o seu idioma, mas sim em saber como usá-lo de maneira eficiente para contar uma história, quer seja de ficção ou não; que seja cativante e envolvente; ou transmitir informações caso escreva sobre temas técnicos. Escritores n

Serpente marinha

_O que poderia ser aquilo? As duas bolas incandescentes vinham em alta velocidade dentro da água do mar em direção ao navio, a fragata União, designada também pelo alfa numérico F-45. O alarme disparou momentos atrás por um dos sentinelas e chamou grande parte da tripulação ao convés, todos estavam muito aflitos para saber o que poderia ser aquelas duas bolas semelhantes a anéis de fogo navegando pouco abaixo da superfície d’água. Era noite e o navio seguia do Rio de Janeiro para Miami; estavam agora em águas caribenhas. Os sonares estavam captando algo que aumentava de tamanho conforme se aproximava, era uma coisa muito grande. Não parecia-se com nada que a tripulação experiente já tivesse visto em muitos anos de mar. A correria aumentou em todos os postos de combate, a sirene soou mais uma vez e anunciava posições de batalha, soldados foram alocados no convés do navio munidos de armas, outros começaram a preparar torpedos e minas de profundidade. Dois alertas foram emitidos;