O Peugeot parou junto ao meio-fio em
frente à casa de Diana; Ângelo desligou o motor, retirou a chave da ignição e
os dois ficaram imóveis sentados dentro do carro sem falar palavra alguma por
alguns minutos, ambos olhando para o vidro frontal do veículo como se estivessem
esperando ver algo diferente nele.
Diana estava confusa, ainda queria
entender exatamente o que tinha ocorrido naquela noite, mas não tinha
informações suficientes em sua jovem experiência de vida que pudesse lhe
proporcionar uma explicação qualquer. Ela nunca achou que presenciaria algo
como aquilo que o namorado havia demonstrado.
Diana nunca teve qualquer opinião
formada sobre a existência de fatos de cunho sobrenatural do tipo premonições,
visões do futuro ou qualquer tipo de outra manifestação desse nível. Ela
considerava que muito provavelmente um número bem pequeno, para não dizer
minúsculo, de pessoas ao redor do mundo poderia, de fato, ter potencial para
manifestar habilidades ou atrair fenômenos como os descritos e estudados pela
parapsicologia. Fenômenos como precognição ou premonição, clarividência,
psicocinese, retrocognição, telepatia, simulcognição e piroscinese. Mas ela
cria que aquilo na verdade era irrelevante, nunca deu qualquer valor a
informações sobre qualquer coisa ligada a paranormalidade quando via
reportagens a respeito do tema vez por outra na televisão.
Agora ela estava reconsiderando aquele
paradigma que tinha desde que se entendia por gente; havia acabado de ser
testemunha ocular de um fato que se tivesse sido relatado por qualquer pessoa,
ela diria se tratar de uma boa invenção. Mas vira e ouvira com seus olhos e
ouvidos o namorado falar em alto e bom som que um acidente estava para
acontecer e logo em seguida o fato ocorreu.
Diana virou a cabeça e olhou para
Ângelo que permanecia sentado olhando de maneira dispersa à frente do veículo,
ele respirava de uma forma calma e o semblante estava tranquilo, nem parecia
ter se dado conta de que havia evitado que um homem fosse morto pelo fogo
causado pelo contato da gasolina com o cigarro aceso em algum ponto debaixo do
carro batido.
Finalmente Ângelo olhou para ela com
uma expressão suave na face, os cenhos arqueados, a testa levemente enrugada e
os lábios tão apertados que pareciam formar apenas um pequeno risco abaixo do
nariz. No fundo ele estava ansioso para saber o que a namorada estava pensando,
mas não ousava dizer nada, porque não sabia o que falar.
Diana percebeu a inquietação disfarçada
no olhar dele e retribuiu com um olhar complacente e carinhoso, em seguida
passou a mão pelo rosto dele. Estava tudo bem; ela ainda não conseguia entender
absolutamente nada do que havia ocorrido, mas realmente estava tudo bem.
_ Você tem uma explicação para isso?_
perguntou ela.
Ângelo balançou a cabeça negativamente.
_ Não.
Ele achava aquela mulher a mais
magnífica do mundo, sentia-se abençoado por tê-la ao seu lado, mas ao mesmo
tempo sentia uma extrema vergonha por não ter sido capaz de compartilhar seus
segredos mais íntimos com ela antes de ter de mostrá-los de uma forma tão
abrupta.
_ Desculpe não ter contado antes.
_ Você não precisa se desculpar, eu
também teria escondido uma coisa como essas, quer dizer, é algo espetacular e
você tem de ter muito cuidado ao falar disso.
_ Nunca falei com ninguém a esse
respeito.
_ Ninguém?_ Diana pensou que ele
pudesse ter compartilhado com os pais e com alguns amigos mais íntimos.
_ Jamais conversei nem revelei para
nenhuma pessoa.
_ Nem seus pais?
_Não. Foi isso que eu estava tentando
dizer no carro desde a hora em que saímos do shopping.
_ Como conseguiu esconder algo assim
por tanto tempo sem que nenhuma pessoa pudesse perceber que tinha algo estranho
sendo omitido?
Ele pensou um pouco antes de responder,
já que estava revelando tudo resolveu ir em frente sem reservas, não tinha
certeza de que conseguiria fazer, mas ia tentar. Ele respondeu:
_ Não foi difícil; não me lembro de qualquer
coisa desse tipo acontecendo comigo durante a infância, exceto umas poucas
sensações que não revelavam nada sério, sempre foi algo como um Dèjá vu, não me
incomodava, era só uma percepção leve. Na adolescência foi parecido, tive
poucas sensações sobre pessoas, lugares, objetos e situações, mas nada
relevante, nada que pudesse me dizer como e onde salvar a vida de outro ser
humano. Entende?
_ Então como aconteceu?
Ângelo passou a mão sobre a testa como
que para tirar uma camada de suor recém formada, mas não havia suor algum na
testa, foi uma reação mais mecânica do que qualquer outra coisa.
_ Alguns dias antes do que aconteceu no
parque, eu acordei com o pressentimento de que algo diferente ia acontecer
comigo, no princípio eu não podia imaginar o que seria, mas ignorei porque
essas sensações sempre sumiam depois de um tempo. Sabe, como a fumaça criada
por um fósforo riscado; ela dança e desaparece. Comigo era semelhante. Efêmero.
_ E então?_ Diana estava curiosa.
_ Então, no dia em que salvei Ingrid eu
só sabia que deveria estar no parque e que lá teria de fazer uma coisa, não
imaginei que essa coisa fosse salvar uma garotinha que ia cair de um brinquedo
com defeito. Pensei que eu ia ver algo acontecer, sei lá, alguma coisa
qualquer. Nunca imaginei que eu seria o agente principal a ser guiado para
dentro daquele brinquedo.
Ela tentou mostrar-se compreensiva,
afinal, aquilo era algo totalmente fora dos padrões; e enquanto falava sua
mente ainda fazia giros e mais giros em busca de uma explicação que teimava em
não surgir.
_ Agora ouço uma voz, hoje foi
estranho, mais forte, mais alta do que da última vez.
Os olhos de Diana se arregalaram sem
que ela percebesse.
_ O que essa voz disse? Você conseguiu
compreender bem?
_ Sim, mas pareceu um trovão; falou que
um acidente ia acontecer ali e que uma pessoa ia morrer.
_ A voz não mandou você salvar a
pessoa?
_ Literalmente não, mas creio que
estava implícito, senão, porque revelar algo como isso?_ Ele continuava coçando
a testa.
Diana se recostou novamente no banco do
carro e voltou a olhar o pára-brisa. Falou de modo vago:
_Será que você mudou o destino daquele
homem?
Ângelo não acreditava em destino nem ia
se deixar levar por um debate tão complexo sobre desdobramentos e interrupções
de algo que já estava traçado previamente para a vida daquele homem, mas se
limitou a responder:
_Não sei.
Ela emendou:
_ Não sei o que dizer, isso é surreal,
você sabe o futuro antes dele acontecer; mesmo sem saber direito o que isso
significa só posso pensar que é uma coisa boa.
Ângelo não coçava mais atesta, mas
apertava com os dedos os olhos fechados como que para espantar uma possível dor
de cabeça.
_ Não. Diana, não posso saber coisa
alguma antes de acontecer; isso não é uma constante, acontece somente às vezes,
não tenho controle. E isso me amedronta um pouco.
Ela o olhou novamente; ele também a
estava encarando. Ele continuou:
_ Entende agora porque eu nunca fiquei
à vontade quando as pessoas me reconheciam nas ruas ou me elogiavam sem mais
nem menos. Eu não sei se sou eu que faço essas coisas.
A curiosidade e o entusiasmo crescente
que estavam visíveis na face de Diana desapareceram momentaneamente.
_ Como assim? O que você está querendo
dizer? Vi você puxar aquele homem de dentro do carro batido hoje e uma multidão
de gente viu você pendurado nas ferragens da roda gigante para salvar a vida de
uma menina. Não estou entendendo. É claro que é você quem faz essas coisas.
_Eu sei disso, eu fiz essas coisas, mas
se não houvesse algo diferente em mim, nunca teria feito nada disso. Não sei se
sou eu mesmo quem produz essa sensação ou se existe algo maior agindo em nosso
redor, algo que por algum motivo eu consigo captar. E tem mais. Por que Ingrid
e esse homem hoje? Por que não outra pessoa qualquer? Por que tanto tempo
depois ou por que não antes? Entende o que quero dizer. Passo por centenas de
pessoas todos os dias e nada acontece. Porque esses em particular? O que eles
têm de especial? O que eu tenho de especial?_ lembrou novamente do homem no parque
de diversões; por mais que se esforçasse não conseguia esquecer a face dele nem
o que foi dito.
Diana respirou fundo e pesadamente
tentando ganhar tempo para encontrar alguma coisa para dizer que fosse
confortante para o namorado, ela entendia as dúvidas dele, e compreendia também
que era necessário uma dose muito grande de cautela ao se afirmar qualquer
coisa. Ela falou:
_ São muitas dúvidas_ ela mantinha uma
face indiferente_ e as possibilidades de resposta devem ser infinitas.
_ Compreende agora a causa de eu estar
sempre na defensiva com isso; não me sinto herói coisa nenhuma. Heróis são os
bombeiros que levaram aquele homem acidentado hoje para o hospital, heróis são
os soldados brasileiros em missão fora do país, em lugares como o Haiti, ou
cada pessoa que tenta viver uma vida descente nesse país que os explora cada
vez mais. Fico profundamente incomodado quando Heloi ou Patrícia dizem que sou
o anjo da guarda de Ingrid._ Ângelo já tinha visto em algumas oportunidades os
pais da menina o apresentarem para amigos e conhecidos dizendo exatamente
aquilo: “Esse é Ângelo, o anjo da guarda da minha filha”. Para ele aquilo era
terrível.
Diana deu de ombros.
_ Não sei, mas acho que isso é uma
coisa boa._ ela sempre teve bons olhos, enxergava tudo em seu redor de uma
forma agradável.
Ele refutou:
_ Não é. Essas pessoas têm uma
expectativa monstruosa depositada sobre meus ombros, você não vê? Eles esperam
muito de mim e não sei se posso corresponder todo o tempo; e depois que apareci
em jornais e tudo aquilo aconteceu eu sinto que mais pessoas começaram a me
olhar dessa forma, pessoas que nem conheço. Você viu as meninas na lanchonete
do shopping? E quanto à pequena Karen e seu pai? Até você passou a me olhar
dessa forma.
Diana baixou os olhos, tentou
identificar se tinha realmente feito aquilo, procurou ser muito sincera consigo
mesma, mas não conseguiu notar mudança alguma no seu comportamento com relação
a ele depois dos acontecimentos que o tornaram uma celebridade local, exceto
pelo orgulho que havia aumentado, por ser a namorada dele. Pensou em negar
imediatamente a afirmação feita por ele, mas achou mais prudente fazer uma
análise introspectiva mais acurada.
Ele continuou o discurso com um certo
tom de tristeza na voz. Não estava triste pelas pessoas que o tratavam de modo
diferenciado, mas sim com ele próprio que temia não ser capaz de corresponder a
todo aquele carinho e por vezes admiração.
_E se um dia eu falhar? E se eu falhar
com você? E se falhar com a Família de Ingrid ou com qualquer outra pessoa que conheça
a história e tenha me idealizado como um herói de verdade? Ou pior. E se um dia
eu tiver uma dessas sensações ou ouvir essa voz apenas para ser levado a uma
situação que eu não possa resolver? Alguém que eu não possa salvar._ Quase não
pronunciou direito a última frase.
Desde que salvara Ingrid, Ângelo teve,
poucas vezes, um sonho repetido, na verdade era mais como um pesadelo e nesse
sonho ele sempre falhava ao tentar salvar uma mulher, não sabia quem era porque
não conseguia ver o rosto dela, mas o desespero daquela vítima pedindo ajuda
era algo tão perturbador que só a lembrança era suficiente para fazê-lo tremer
por dentro. Todas as vezes que sonhou aquilo ele acordou transtornado porque no
sonho ele via a mulher morrer sem o socorro que ele devia dar, mas por algum
motivo não dava, na verdade, era como se ele mesmo a estivesse atacando e era
isso o que mais o amedrontava. Ele não contou sobre o sonho para a namorada,
guardaria consigo por mais algum tempo e revelaria dependendo de como ela reagisse
às descobertas iniciais. Precisava ter certeza de que Diana compreendia
totalmente os sentimentos dele com relação a todos aqueles fenômenos.
Diana não tinha nada com que
argumentar, resumiu-se a dizer apenas:
_ Essas pessoas acreditam em você e eu
acredito em você. Agora; você mesmo precisa acreditar. Talvez essa coisa passe,
talvez não signifique nada.
Ele virou o rosto para o vidro da
janela ao seu lado, não estava fugindo de Diana, mas não tinha certeza de
muitas coisas. A namorada continuou com mais uma frase:
_ Talvez você realmente tenha um dom
especial.
Ele não disse nada, a visão estava
perdida em algum lugar fora do carro.
Naquela noite eles tinham ficado no
lugar do acidente até que o carro do serviço de resgate do corpo de bombeiros
chegasse, foram muito rápidos em toda a ação; rapidamente imobilizaram o
acidentado que estava deitado no chão longe das labaredas que consumiam toda a
lataria do carro batido. Levaram-no para a ambulância e procederam com a
remoção imediata do acidentado para a unidade médica de referência da região, o
HGNI ou Hospital Geral de Nova Iguaçu, mais conhecido como hospital da Posse,
por ficar localizado num bairro com esse mesmo nome, muito próximo da rodovia
Presidente Dutra, BR 116, que faz a ligação entre os estados do Rio de Janeiro
e São Paulo.
Lá o homem desacordado que, segundo a
equipe de socorro, demonstrava um quadro de traumatismo craniano e diversas
fraturas nos membros inferiores seria atendido de modo mais completo. O mais
importante era que ele estava vivo e se não tivesse sido retirado do automóvel
o fogo também o consumiria antes que o socorro pudesse sequer ser acionado.
Uma segunda equipe com três combatentes
ficou encarregada de extinguir com o fogo enquanto que um dos bombeiros
perguntava a Ângelo se ele tinha assistido o que aconteceu.
Ângelo disse que estava passando pela
rua quando viu o carro que parecia ter perdido a direção bater contra o poste
de concreto. Na versão que ele relatou, disse que ao ver o choque, parou seu
veículo deixando Diana dentro do automóvel encarregada de telefonar pedindo
ajuda e foi socorrer o motorista que parecia desacordado. Foi só isso; Ângelo
torceu para que nenhuma pessoa o reconhecesse como sendo o homem que salvou a
menina no parque, não queria mais um salvamento sendo atribuído a ele, não
tinha nascido para heroísmos, era apenas uma pessoa com um dom diferente
tentando entender seu propósito num contexto aparentemente maior.
_ Só sei que foi incrível_ disse Diana
recuperando o ânimo na fala_ literalmente incrível, você sabia que ia
acontecer._ novamente havia um entusiasmo moderado nas palavras dela.
Ele soltou uma respiração mais forte
como se houvesse muito ar represado nos pulmões tentando abrir espaço pelas
vias aéreas rumo à liberdade.
Ângelo não sabia mais o que dizer,
estava confuso, nunca tinha revelado aquilo para ninguém e talvez não tivesse
tido coragem de contar para ela se a situação fosse outra. Porém, entendia ao
menos em parte o entusiasmo da namorada.
Ele sentia-se completamente
desprotegido, seu segredo mais estranho, incompreensível e antigo agora seria
partilhado com outra pessoa e como aquilo nunca tinha acontecido ele ficou um
pouco desconfortável, embaraçado.
Sem saber o que falar, ele apenas
concordou:
_Eu sabia._ disse aquilo como se
tivesse sido vencido numa contenda; mais expulsou as palavras do que
pronunciou.
_ Acho que devemos conversar mais a
respeito?_ Diana sentia que precisava oferecer apoio, não sabia bem como fazer
isso, mas era seu dever.
_ Sinto que devo, mas não sei mais o
que te dizer.
Ela segurou a mão dele. Estava fria.
_ Vamos lá pra dentro, não podemos
dormir no carro. _Ela sorriu com uma facilidade que o encantou. Ele percebeu
que a face iluminada de Diana tinha ajudado a dissipar as sombras que cercavam
o coração dele com uma enxurrada de dúvidas.
Havia uma sensação pairando no ar, mas
ele não conseguia identificar o que era.
Só naquele momento ele voltou a se dar
conta de que estavam ainda sentados no interior do Peugeot. Ângelo pretendia
apenas deixar a namorada em casa e voltar para a sua depois daquela excelente
tarde que passaram juntos no shopping, mas as coisas tomaram outro rumo e agora
ele se via na eminência de tentar dar uma explicação mesmo que fosse a mais
estapafúrdia que pudesse. Ângelo mesmo não tinha respostas para todas as
perguntas que ela provavelmente faria; Diana era inteligente e possuía uma
mente aguçada e curiosa.
A casa de Diana tinha um muro alto com
aproximadamente dois metros de altura, um pouco mais; não era possível ver a
residência escondida por detrás dele, era adornado com telhas de cerâmica
avermelhadas colocadas cuidadosamente, elas formavam uma espécie de chapéu
sobre o muro de um lado até o outro.Havia apenas um grande portão retangular de
alumínio por onde poderia passar um carro e, dentro desse retângulo havia uma
porta que era usada normalmente para dar acesso a casa no caso de não estarem
usando o carro.
Diana saiu do Peugeot e sacou de sua
bolsa uma chave, com ela abriu o portão menor e entrou fechando-o em seguida.
Enquanto isso Ângelo manobrava o veículo de forma a colocá-lo atravessado na
rua e de frente para o grande portão de alumínio que se abriu correndo
lateralmente sobre dois pequenos trilhos com Diana empurrando. O carro avançou
e subiu a calçada por uma rampa de acesso até a garagem onde o carro da
namorada permanecia parado e protegido, visto que era uma garagem para dois
carros e coberta.
Ângelo por um momento teve a impressão
de que o carro dela, um Ford Fiesta 2007 preto, nada mais era do que uma grande
massa amorfa em suspensão, mas logo que a luz dos faróis do seu carro iluminou
o outro a ilusão se desfez imediatamente. O motorista piscou os olhos algumas
vezes, devia estar apenas cansado.
Diana fechou o portão de garagem e
trancou tudo, Ângelo desligou o carro e retirou as sacolas contendo o que
tinham comprado no shopping. Ao fundo da garagem havia uma porta de grades que
era a entrada para a casa; ambos entraram.
A porta dentro da garagem levava a uma
espécie varanda fechada onde máquina de lavar e secadora de roupas estavam
encostadas na parede do lado esquerdo. Ao lado delas outra porta dava acesso a
uma cozinha pequena que era seguida pela sala na qual havia uma escada levando
para o andar de cima onde ficava o quarto e o local de trabalho da dona do
lugar.
Diana morava sozinha há dois anos e
montou um escritório em princípio com a ajuda dos pais, para poder exercer sua
profissão de design gráfica, embora primeiro tenha feito a faculdade de Direito
e somente depois de concluída passou a estudar design que era uma de suas
paixões. Ela não chegou a prestar o exame da OAB embora esse ainda fosse um dos
sonhos do pai dela.
No começo quase não apareciam trabalhos
para ela e os poucos que surgiam não eram satisfatórios no que dizia respeito à
parte financeira. Alguns meses depois ela foi contatada por uma editora que
vira um de seus trabalhos na internet e desejava utilizar como imagem de capa
para a versão traduzida de um livro estrangeiro cujos direitos a editora havia
acabado de negociar. Aquele foi o primeiro grande negócio de Diana que passou a
trabalhar como “freelancer”, em seguida ela teve a idéia de passar a criar
capas personalizadas para jovens escritores e anunciando seus trabalhos pela
internet conseguia vender capas já prontas ou criava algumas sob encomenda e a
demanda foi espetacular.
Agora Diana estava trabalhando com uma
fila de espera de duas semanas, trabalhava sozinha mais era, além de talentosa,
muito organizada e dedicada ao serviço, porém sempre que conseguia fazer uma
boa venda de capa para algum jovem escritor ou qualquer bom serviço extra ela
se permitia um pequeno prêmio motivacional, geralmente era a compra de alguma
coisa que desejava e foi exatamente aquilo que tinha feito no shopping com o
namorado naquele dia. Aprendera a técnica de se auto presentear numa palestra
motivacional voltada para profissionais liberais. Gostava dessas coisas,
palestras, cursos e “work shops”. Costumava participar de tantos quantos pudesse
e cria que todo aquele conhecimento que adquiria estava realmente fazendo a
diferença em sua carreira.
Para o futuro ela estava pensando em
ampliar ainda mais o seu raio de ação, quem sabe criar uma pequena agência de
design; a internet era uma ferramenta formidável para negociações, fechamento
de trabalhos e com certeza a ajudava muito, mas ainda estava em fase de estudo
quanto às novas oportunidades que se abriam.
O pai de Diana, Dr. Maurício Moura
Lima, insistia que ela devia ter um escritório mais formal localizado em algum
endereço comercial; ele era um advogado bem sucedido, ex-vereador do município
de Mesquita e muito reticente quanto à forma virtual da filha trabalhar; ele
mantinha seu escritório jurídico no centro do município já há mais de trinta
anos e mesmo quando cumprira os quatro anos de mandato legislativo na câmara
ainda manteve aberto o escritório que ficou a cargo da esposa também advogada.
Diana não queria, ao menos naquele momento, um escritório em alguma sala
comercial do centro de Mesquita pelo simples fato de que isso fatalmente
acarretaria em despesas fixas mensais, mas não era certeza de aumento de
receita na mesma proporção. Ela preferia manter seu “Home Office” que era
funcional e sem nenhum custo extra.
Já a mãe de Diana, Janete Alves Lima,
era muito mais favorável ao modo de trabalhar da filha e deu o máximo apoio
desde a criação do escritório em casa até uma pequena ajuda financeira para anúncios
na internet a fim de começar a alavancar os negócios.
O dinheiro que entrava com as vendas
sob encomenda de trabalhos de todos os tipos estava sendo mais do que
suficiente para se manter mensalmente e ainda restava um pouco para guardar e
investir.
Ângelo já tinha dormido na casa da
namorada pelo menos duas vezes, portanto tinha algumas roupas lá que nunca se
lembrava de levar para a sua casa, mas serviam para emergências como aquela.
Todos ao redor de Diana sabiam que seu início de carreira bem sucedido era
fruto de talento, organização, foco e trabalho. Os quatro pilares de sua vida.
_ Você quer comer alguma coisa?_ Diana
estava fechando a porta.
_Sabe._ disse Ângelo_ Eu estou bem
cansado. Não quero nada. Obrigado.
Ela sorriu tentando ainda desanuviar o
clima que tinha ficado nebuloso com a conversa no carro. Disse:
_ Você puxou um cara bem maior que você
para fora de um carro batido, tinha mesmo que ficar cansado.
Ele concordou balançando a cabeça, mas
o cansaço que estava sentindo não era físico, mas sim mental; Ângelo sentia um
peso enorme nos ombros e na base do pescoço, estava com dor de cabeça e com a
boca seca.
_ Vou beber água, tomar uma ducha e
dormir, amor.
Diana pareceu um pouco contrariada,
queria saber mais sobre todo aquele negócio de adivinhar as coisas que ainda
não tinham acontecido; poderia passar a noite toda formulando perguntas, mas
ficou impassível e apenas disse:
_ Não quer conversar?
Ângelo estava tentando fugir de uma
conversa da qual não teria controle algum, Diana queria respostas que ele não
tinha, mas não estava fingindo, só queria que o dia acabasse e um bom sono
certamente faria muito bem para ele e seus pensamentos. No dia seguinte talvez
tivesse mais condições de falar a respeito.
_ Amanhã conversamos Diana, minha cabeça
está me matando. E ainda tenho que ligar para casa e tentar explicar que vou
passar a noite aqui.
_ Vai contar sobre o acidente?
_ Não.
_ Acho que devia.
_ Por quê?_ Ângelo se mostrou surpreso
com o comentário dela.
_ Ora; são seus pais. Se eu tivesse um
filho ia quere saber se ele andasse por aí tirando gente de carros batidos e
salvando menininhas em parques de diversões._ Diana não fazia por mal, mas
estava tentando dar um jeito de trazer o assunto à baila novamente para extrair
qualquer informação extra que pudesse satisfazer sua curiosidade.
_ Você sabe como eles sãos, já foi
terrivelmente difícil fazer principalmente minha mãe aceitar que salvei Ingrid
do jeito que foi, ela só conseguiu ouvir que eu fiquei pendurado no brinquedo e
expus minha vida a risco, passou mal, foi um desastre. Se eu contar qualquer
coisa desse tipo ela vai ficar horas e horas querendo saber absolutamente tudo
sobre o fato e ainda vai querer me dar alguma lição de moral, dizendo que eu
fico por aí bancando o salvador do mundo. Não Diana, hoje eu só quero dormir em
paz; amanhã penso com calma se conto para eles.
Aos olhos da namorada pareceu um bom
argumento.
Diana foi tomar banho enquanto ele
ligava para casa a fim de informar aos pais que ia dormir na casa da namorada.
Ângelo, aos 30 anos morava com os pais
e um irmão mais novo, de 24 anos, Luis Miguel dos Santos; em um apartamento
tradicional no centro de Nova Iguaçu. Aliás, a palavra tradicional servia muito
bem para caracterizar a família dele.
Tanto o pai, Luis Roberto dos Santos;
quanto a mãe, Ana Maria Aparecida dos Santos eram professores universitários a
vida toda. Eles ainda trabalhavam e amavam o que faziam; lecionar era para cada
um deles como empurrar o mundo centímetro por centímetro, às vezes, milímetro
por milímetro para uma realidade melhor. A mãe dele ensinava matérias
relacionadas à língua portuguesa e o pai, matérias da área Contábil.
Após explicar que passaria a noite na
casa de Diana; Ângelo desligou o telefone e ficou sentado no sofá da sala
aguardando e tentando expurgar a insistente dor de cabeça que o dominava.
A namorada reapareceu trajando um
roupão bastante felpudo, branco com uma faixa enrolada na cintura; também
trazia uma toalha.
_ E então, falou com eles?_ perguntou_
O que disseram?
Ainda encostado no sofá, com o corpo
totalmente voltado para trás, sobre o encosto acolchoado, com os olhos fechados
e ambas as mãos na testa ele respondeu:
_ Está tudo certo._ Mantinha os olhos
cerrados porque a luz estava incomodando a visão e aquele estímulo tinha uma
resposta cada vez mais forte em forma de dor atrás dos olhos, dentro da cabeça.
Diana entregou para o namorado a toalha
que trazia.
_ Tome um bom banho e venha para o
quarto, estou achando mesmo que você precisa de uma boa noite de sono. Vou
preparar tudo.
Ela subiu e deixou Ângelo sozinho na
sala, ele tentou levantar, mas sentiu uma leve tontura que fez com que tudo a
seu redor parecesse ter ficado repentinamente inclinado.
Havia uma sensação indecifrável
pairando no ar.
Ele tentou interpretar aquela sensação
que novamente era semelhante à de um Dèjá vu, algo muito familiar, mas ao mesmo
tempo não parecia ser tão claro assim. Havia alguma coisa acontecendo com ele,
alguma coisa subliminar que em parte era perceptível e em parte não.
Foi para o banheiro logo que a tontura
parou; entrou e fechou a porta. O banheiro pequeno tinha o box do chuveiro, a
pia com o armário logo acima em cuja frente havia um espelho. Sobre a pia
estavam alguns perfumes, loções e óleos corporais que Diana costumava usar,
além de frascos de cremes e sabonetes líquidos.
Ângelo tirou a camisa e abriu a
torneira, jogou a camisa sob um suporte para roupas atrás da porta e inclinando-se
para lavar o rosto ajuntou com as duas mãos em forma de concha a água que caía
da torneira. Jogou a água no rosto sentindo um alívio quase que imediato de sua
dor de cabeça.
Refez o gesto mais duas vezes sem nem
perceber que aquilo era praticamente desnecessário visto que ia se enfiar
embaixo do chuveiro, mas tinha por costume, ou talvez fosse algum tipo de
mania, molhar o rosto na pia mesmo antes de tomar banho. Ele ficou um tempo
debruçado sobre a pia e de olhos fechados enquanto a água pingava do rosto.
Quando finalmente abriu os olhos e se aprumou Ângelo tomou um enorme susto.
A imagem refletida no espelho não era a
dele, viu o rosto de outra pessoa, um rosto sorridente e terrivelmente medonho.
Com um sobressalto ele esbarrou em todos os potes de óleos, loções e perfumes
sobre a pia, fazendo com que praticamente todos caíssem com um barulho alto,
provocado pelo contato dos potes contra o chão recoberto por ladrilhos. Por
sorte nenhum deles se quebrou.
Ele andou para trás, o coração
disparado, e ouviu a voz de Diana perguntando o que tinha acontecido.
_ Está tudo bem aí?_ ela disse de fora.
Ângelo olhou para a porta fechada como
se pudesse enxergar através dela, sabia que a namorada estava parada do outro
lado demonstrando preocupação. Voltou o olhar para o espelho e a única imagem
lá era a sua própria.
_ Ângelo!?_ Diana estava mesmo
preocupada. Ela bateu na porta algumas vezes porque não estava obtendo
resposta.
Confuso com a visão que acabara de ter,
ele pensou o mais rápido que pôde.
_ Está tudo bem, amor, só derrubei
algumas coisas. Só isso._ Tentou fazer com que a voz não demonstrasse o grau de
confusão que havia se formado dentro dele. Olhou novamente para a porta e em
seguida para o espelho. Apenas seu reflexo exatamente como tinha de ser.
Diana falou além da porta fechada:
_ Nossa cama já está pronta.
_Já estou indo._ estava tão nervoso que
nem se deu conta de que ainda faltava tomar o banho.
A torneira continuava derramando água
que se perdia pelo ralo como se o líquido não tivesse valor algum. Ângelo
passou a mão pelo rosto, o susto foi tão grande que a cabeça quase não doía
mais. Tentou se acalmar.
A visão tinha sido muito real, não
havia dúvida alguma de que ele vira um rosto sorridente que o encarava com
curiosa felicidade. Respirou fundo e tentou entender o que estava se passando.
_ O que está acontecendo?_ balbuciou.
Não diria aquilo para Diana, ela poderia achar que ele estava ficando louco.
Quando finalmente saiu do banheiro,
depois de um banho rápido que não foi suficiente para relaxar e ainda pensando
na visão assombrosa que teve no espelho. Ângelo foi para o quarto onde a
namorada estava deitada sobre a cama e assistindo televisão, o ventilador
estava ligado produzindo uma brisa suave e confortável.
Diana bateu com a palma da mão na cama
a seu lado chamando-o para se deitar ali. Embora morasse sozinha, Diana fez
questão de colocar uma cama de casal no quarto, assim tinha muito mais espaço
para se virar e rolar durante a noite, além do que, na visão dela uma cama
maior dava um ar mais independente ao cômodo. Transmitia uma mensagem de que
quem dormia ali era uma mulher auto-suficiente e não uma menina.
Ela já tinha preparado a cama para
receber o namorado, havia um travesseiro extra ao lado do usado por ela e
também um conjunto de cobertores dobrados a seu lado.
_ Vem deitar._ disse_ Acho que uma boa
noite de sono vai ser o suficiente para recuperar nossas energias.
Um relógio de cabeceira colocado no
console lateral da cama mostrava que ainda não passava de meia-noite e Diana
assistia o último jornal da programação da emissora antes do programa de
entrevistas de Jô Soares.
Com um pouco de receio e tentando
parecer o mais normal possível, Ângelo contornou a cama e se sentou ao lado
dela, ainda sentindo aquele persistente Dèjá vu pairando sobre sua cabeça e com
a face estranha que o viu no banheiro também assombrando sua mente.
As coisas estavam muito diferentes,
várias sensações estranhas juntas, e outras que ficavam o tempo todo escapando
de sua percepção. Fosse aquilo o que fosse; ele estava começando a pensar que
algo vinha em rota de colisão com ele, sua vida poderia perder o sentido ou ser
afetada por algo que ele não conseguisse conter. Lembrou novamente do sonho e
dos gritos aterrorizantes de socorro que a mulher pedia sem sucesso.
Estremeceu por dentro só de pensar que
por algum motivo alheio à sua compreensão tudo aquilo podia estar interligado.
Olhou para Diana que se mantinha recostada e com os olhos brilhantes ainda
fixados nas reportagens exibidas pelo jornal televisivo; não parecia preocupada
com coisa alguma, mas sim totalmente relaxada.
Ele por outro lado mantinha-se absorto
nos pensamentos escuros que brotavam dos lugares mais escondidos de sua mente.
E se aquele não fosse apenas um sonho comum, mas sim uma projeção de algo que
de fato ia acontecer? Tal como a menina no parque e o homem na estrada. E se
aquela mulher fosse Diana? Não podia sequer pensar naquilo.
De repente, na mente de Ângelo foi como
se uma sombra enorme estivesse abrindo suas imensas asas obscuras e com isso
roubado toda a luz que havia antes. Era uma péssima sensação.
Mas o pior ainda estava por vir e
começaria naquela madrugada.
(Ir para capítulo 7)
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