Finalmente estava de volta ao lar, a
chuva tinha diminuído de intensidade, mas ainda caia com força suficiente para
fazer com que pessoas não ousassem caminhar sem a devida proteção pelas ruas.
Ele estava parando o carro na garagem e
sua mente permanecia repleta de pensamentos referentes ao episódio pelo qual
passou. Como digerir aquelas visões? Como assimilar as vozes? E pior, como
fazer para superá-las. Em pouco menos de dois dias ele tinha ouvido mais vozes
e tido mais visões do que na soma de vários anos anteriores. Estava tão perdido
quanto um barco à deriva ou um piloto no meio de um vôo cego.
Além disso, Ângelo estava
experimentando um cansaço físico e mental nunca antes sofrido e também sentia
como se muita informação tivesse sido arrancada à força de sua cabeça, havia
espaços enormes faltando em suas memórias; não sabia o que havia desaparecido,
mas tinha certeza de que perdera muita coisa, apesar disso, outra sensação tão
estranha quanto essa estava solta nele. Sentia o corpo muito mais pesado do que
antes, como se tivesse dobrado de tamanho, talvez tudo aquilo fosse provocado
pelo estado físico em que estava, mas ele não tinha certeza.
Sob circunstâncias normais atribuiria
tudo aquilo ao cansaço, mas naquela noite não; naquela noite todas as coisas
tinham algum significado oculto e tudo estava intimamente ligado ao acontecido
na casa de Patrícia e Heloi.
Ao sair da casa de seus amigos Ângelo
acompanhou Diana até a casa dela, não quis ficar, mas fez questão de entrar e
olhar todos os cômodos antes de deixá-la entrar; não sentiu segurança alguma
ali. Diana queria ficar na casa e foi com muita relutância que se deixou
convencer pelo namorado a não dormir na residência sozinha, ao menos naquela
noite. Seria melhor que ela fosse para a casa dos pais. Diana só concordou
porque notou o quanto ele estava preocupado e ela não queria fazê-lo sofrer
mais com pensamentos quanto ao seu bem estar. Na verdade ela não acreditava que
o fantasma visto na casa dos amigos desejasse fazer qualquer mal físico a ela
mesma, porque se fosse esse o caso já o teria feito no momento de sua aparição.
Diana não tinha as explicações capazes de tranquilizar os ânimos de todos ou nortear
os pensamentos deles, mas estava procurando se convencer de que tinham sido
alvos de uma trama casual definitivamente sem explicação. Quantas e quantas
vezes tinha ouvido relatos de pessoas que juravam ter visto fantasmas,
assombrações e até mesmo extraterrestres; muitas destas histórias eram contadas
por pessoas conhecidas dela desde a infância, portanto, Diana, com sua mente
racional, tentava equacionar toda a situação e buscava encontrar um fio de
ordem que pudesse servir de guia para seus pensamentos, estava obtendo êxito,
mas só estava conseguindo porque não tinha visto todo o espetáculo
aterrorizante ao qual seu namorado foi exposto.
Ângelo não entendia como a namorada
podia estar tão calma depois de tudo o que tinham passado naquele dia e depois
de tudo o que tinham visto, mas já tinha decidido não pensar em absolutamente
mais nada naquela noite. Tudo o que queria era chegar em casa e dormir, no dia
seguinte com a cabeça mais fresca depois de uma boa noite de sono e com o corpo
muito mais descansado ele pensaria com mais calma e atenção acerca de todos os
acontecimentos pavorosos que vivenciara e, só então, decidiria o que fazer.
Heloi, Patrícia, Mônica, Ricardo, Diana
e ele tinham decidido voltar a se encontrar na tarde do dia seguinte; tinham muito
a conversar a fim de tentar encontrar as explicações que lhes faltava. Ele não
tinha certeza, mas imaginava que Mônica e Ricardo, que passariam a noite na
casa dos pais de Ingrid, usariam este tempo para falar sobre tudo o que estava
pendente entre eles, provavelmente não fosse muito, pois Ângelo notou uma clara
desorientação em Ricardo; todos notaram. Talvez ele realmente não se lembrasse
dos fatos do passado; talvez suas memórias tivessem sido devoradas pela sombra
e tudo o que restava dentro da cabeça dele fosse um grande vazio escuro toda
vez que tentava se recordar de algum fato.
Muita coisa estranha tinha acontecido e
Ângelo jamais acreditou tanto assim em coincidência para creditar tantos fatos
inexplicáveis na conta dela.
Estacionou o carro na garagem de casa e
quando desligou o motor ouviu o tamborilar dos muitos pingos grossos e pesados
sob alguma superfície metálica em algum lugar por ali, nas proximidades,
provavelmente numa telha ou algo parecido.
Permaneceu parado dentro do carro
tentando espantar o fantasma que ainda rondava sua mente; estendeu as mãos
sobre o volante e percebeu que ambas estavam tremendo um pouco. Tentou
contê-las, mas não foi capaz; estava mais abalado do que podia imaginar.
Cerrou os punhos para tentar fazê-los
parar de tremer, em uma das mãos ele segurava as chaves do automóvel e da sua
casa, elas tilintavam levemente de encontro umas às outras. Passou rapidamente
os olhos pelo espelho interno, pensou que fosse ver o rosto que vira antes no
espelho da casa de Diana ou alguma formação nebulosa surgindo no banco
traseiro, mas não havia nada lá.
Estava um tanto desconfortável.
_ Estou perdendo o controle?_ indagou a
si mesmo, e concluiu._ Fique calmo Ângelo. Mantenha a cabeça no lugar.
Sorriu ainda com os olhos fixados no seu
próprio reflexo no espelho e ficou assustado com sua feição. O sorriso soou
alterado e seu rosto ganhou uma aura lunática, destorcida provavelmente pela
fadiga, não era nada sobrenatural, mas apenas parecia o sorriso de um homem
cujas faculdades mentais estivessem seriamente afetadas. Desviou o olhar
rapidamente; seu rosto parecia envelhecido.
_Talvez seja o cansaço._ Disse sozinho.
E logo em seguida se odiou por estar falando, em voz alta, coisas para si
mesmo. Não era seu costume fazer isso, fazia uma ou outra vez como todo ser
humano comum, mas algo o estava incomodando desta vez.
Segurou o volante com força por um
instante tentando se concentrar, e quando estava se preparando para deixar o
automóvel viu algo do lado de fora, um vulto pequeno e escuro que desceu como
uma pluma bem ao lado da janela. Ângelo pensou que fosse mais uma de suas
visões sem explicação, mas logo viu outro e mais outro; seu carro estava sob
uma chuva de pequenos retalhos negros que pareciam se desprender do teto da
garagem.
Ângelo colocou a cabeça sobre o volante
e aproximou a face do vidro dianteiro para ver o capô do carro; estava coberto
daquilo, fosse o que fosse. A chuva comum também continuava, mas aqueles
pequenos retalhos negros desciam sabe-se lá de onde aos montes e provavelmente
já tinham coberto todo o teto externo do veículo também.
Ele agiu rápido, mas levou um milésimo
para decidir se estava delirando ou não. Abriu a porta o mais rápido que pôde e
saiu do carro; o chão estava coberto daqueles pequenos objetos leves e negros e
muitos outros continuavam caindo sobre ele, vindos do nada. Ângelo olhou para
todos os lados esperando ver a sombra nebulosa com tentáculos, mas não havia
nada em nenhum lugar. Abaixou e recuperou do chão um daqueles retalhos negros,
ficou desconcertado ao averiguar que não se tratava de um retalho de tecido
como ele pensava ser, mas sim de uma pena preta, exatamente como a pena de um
pássaro, um urubu talvez, media cerca de dez centímetros e era de um tom de
preto vivo, quase reluzente; o chão estava repleto delas e muitas outras caiam
sobre ele também. Era como ser alvo de uma daquelas chuvas de pétalas de rosa,
porém não eram pétalas.
Com a pena na mão e ainda procurando
algo que pudesse denunciar se realmente era um delírio, Ângelo fechou a porta
do carro e ouviu a voz do desconhecido retumbante dizendo:
_ Achei que já era hora de nos
conhecermos melhor, frente a frente, só nós dois. Finalmente.
O carro de Miguel estava parado poucos
metros à frente e parecia nunca ter saído daquele lugar. O som pareceu sacudir
tudo ao redor, mas obviamente só ele estava ouvindo, era a mesma voz com quem
já tinha falado nas outras ocasiões.
Tentando deixar o medo de lado,
principalmente porque não havia mais nada a fazer, Ângelo fez as mesmas
perguntas que sempre teimavam em aparecer nesses momentos:
_ O que é você e o que quer comigo?_ A
sua voz era tão comum, tão normal, tão demasiadamente frágil se comparada com o
estrondo sônico da outra.
No fundo não esperava receber resposta
alguma, mas a voz retornou:
_ Eu conheço você Ângelo dos Santos,
conheço seu nome, conheço sua família, conheço seus amigos, conheço a mulher
que você ama._ houve uma pausa, E em seguida_ Conheço sua vida, suas
recordações, seus sonhos. Conheço suas vontades, seu coração, seu espírito e
sua alma. Essa última frase soou como um estrondo ainda maior.
As penas negras já não caiam mais, mas
o chão ainda estava coberto com elas, era como um tapete de extremo mau gosto
confeccionado com dezenas de aves mortas. Como uma peça de mau agouro.
_Você não é como Ricardo, na verdade
você não é como nenhum dos outros antes dele; você é diferente, especial. Com
poucos medos verdadeiros.
_Não sou especial!_ Gritou, mas não
havia mais som algum no ambiente, nem a chuva recaindo sobre a superfície
metálica em algum lugar próximo, nem o som de sua própria voz; nada.
Mas a voz estrondosa ainda soava
soberana; o único som capaz de vencer o vácuo repentino que se formou, e foi
quando Ângelo percebeu que ela estava apenas dentro de sua cabeça; mesmo que
mais alguma pessoa estivesse ali com ele, não ouviria a voz em forma de trovão.
Ele queria distinguir até onde aquilo era um pesadelo e até onde era real.
_Hoje você vai me conhecer como apenas
poucos já o fizeram. E será como eu, seremos um só. Não precisarei de
artifícios como os usados em Ricardo, dando vida à porção mais fraca e
escondida da personalidade dele; não com você, você é perfeito para fazer tudo
o que desejo. Ele é fraco, você não é.
Uma névoa negra finalmente brotou do
chão como fumaça e cobriu em segundos todo o tapete de penas, em seguida aquilo
se ergueu quase que tomando a forma de uma pessoa, não estava muito bem
distinta, mas parcialmente disforme, a visão era brutal; parecia haver
tentáculos se movendo em lugar dos membros, asas malformadas às costas e uma
espécie de grande manto obscuro pendendo dos ombros, se arrastando pelo chão
como se estivesse vivo. As luzes da garagem diminuíram e ficaram a ponto de se
apagar totalmente. Todas.
Ângelo correu para a chuva, tinha que
sair dali o quanto antes; gritou, mas a falta de som não permitia pedir
socorro. Enquanto corria para o centro do pátio da garagem, fora da proteção
contra a chuva ele ainda segurava firmemente a pena negra que recolheu do chão,
estava desesperado e não olhou para trás.
O vulto pairou sobre sua própria névoa
e como um dos anjos decaídos da primeira rebelião que perderam seus corpos,
farfalhou as asas espalhando mais penas feitas de sombra; avançou tão rápido
quanto o vento.
A simples presença da criatura parecia
impedir a propagação da luz e do som ambiente, criando uma espécie de vácuo de
trevas.
Qualquer observador que por ventura
olhasse a cena que se desenrolava ali veria um homem correndo como se estivesse
fugindo do próprio diabo e uma grande nuvem de fumaça escura e sem forma
avançando sobre ele, certamente seria a visão mais surreal que um ser humano poderia
ter em sua vida, mas não havia ninguém olhando, nenhum observador, nenhuma
testemunha, ninguém que pudesse tentar ajudar. Ângelo estava completamente
sozinho naquela batalha e não tinha muitas chances de vitória.
Talvez ele nunca tivesse corrido tanto
na vida, mas nem toda a velocidade do mundo seria capaz de colocar uma
distância segura entre o homem e a sombra. Ângelo sentiu as pernas vacilarem
por causa do cansaço que inundava sua mente e corpo combinado ao esforço
extremo que estava fazendo para fugir, perdeu o equilíbrio por um instante
apenas, tropeçou, e foi o suficiente para que a sombra já estivesse sobre ele.
Não houve confronto.
Ângelo sentiu o corpo sair do chão e
ser arremessado contra o solo por uma força desconhecida, bateu a cabeça no calçamento
molhado pela chuva com grande violência, gritou de dor, não havia som; ficou
tonto na mesma hora. Tentou se levantar, mas o peso da tontura e do cansaço já
era demasiado para suas forças comuns. A chuva o açoitava com seus pingos
grossos, ele girou de um lado para o outro, estava sobre uma grande poça
d’água, tentava se levantar, mas não tinha força para tanto.
Pela primeira vez Ângelo teve a certeza
de que a origem de suas antigas sensações e das vozes que escutou durante a
vida não era divina como tentou se convencer desde sua infância e adolescência,
mas sim era originado por aquela coisa que agora o perseguia. Obviamente, uma
origem não menos do que profana.
As luzes ao redor se apagaram
completamente e a escuridão tomou conta de todos os lugares do pátio da
garagem, uma escuridão tão densa que parecia sólida, palpável. Ângelo sentia o
peso das sombras sobre ele, inutilizando seus movimentos como se houvesse sido
engolido por um fosso de alcatrão; embora não pudesse ver coisa alguma, sentia
a movimentação lenta da criatura sobre ele, aquilo gerava uma grande aflição
que só foi substituída pela dor que o tomou de repente.
_Acompanho você desde sempre, Ângelo._
A voz sussurrou dentro da cabeça dele_ Acompanho todos vocês; procuro alguém
que resista, alguém que possua os atributos para suportar a dor. A minha dor.
A dor aumentava e a sombra continuava.
_ A dor que vai purgar suas dúvidas,
seus medos e sua humanidade. A dor que vai transformar a sua mente, seu corpo e
vai torná-lo muito mais do que uma simples pessoa; muito mais do que um homem
comum.
A vítima não pôde deixar de pensar em
“Ricardo, Fausto”; foi um pensamento tão rápido quanto um relâmpago errante
atravessando os altos céus naquela noite chuvosa.
_ Ricardo não é como você. Tudo o que
ele queria era a mulher de volta, eu tive de liberar sua outra personalidade,
muito mais vingativa e violenta para que ele se tornasse uma pessoa mais forte,
humanamente mais verdadeira. Mas aquele a quem chamaram de Fausto era instável
e não compreendeu a grandiosidade do que estava acontecendo, não entendeu que
era o meu poder em suas mãos e se infiltrou numa busca particular. Por isso o
aprisionei novamente nas profundezas de seu lugar de origem, cuidarei dele no tempo
oportuno.Mas agora tenho você.
No meio da escuridão mais um som pôde
ser ouvido além da voz da sombra e era o farfalhar de asas. Ângelo tentou
gritar, mas não foi capaz, estava fraco demais para fazê-lo. Porém todo e
qualquer pensamento que brotasse na cabeça dele era imediatamente devorado pela
criatura, como se o monstro pudesse decifrar cada sinapse de seu cérebro
interpretando-as antes que ele mesmo o fizesse.
Ângelo pensou, embora já não tivesse
mais força para fazê-lo, em perguntar por qual motivo estava sendo submetido a
tal tortura. A criatura respondeu mesmo sem que a pergunta fosse efetivamente
feita.
_ Você será o meu arcanjo, o meu anjo,
meu profeta, meu sacerdote, meu juiz e meu carrasco. Você será uma faísca do
Caos, o braço da escuridão; o mensageiro da dor. O hospedeiro de Érebus.
A dor aumentava; as sombras que tinham
roubado toda a luminosidade do ambiente e obscurecido toda a visão de Ângelo
pareciam estar tentando entrar através dos poros de sua pele e a vítima estava
lutando com o pouco de força de vontade que ainda restava; não tinha mais
forças físicas, a lucidez já começava a falhar, a respiração diminuía e os
sentidos estavam muito perto de um colapso absoluto.
A voz continuava a sussurrar:
_ Em pouco tempo você vai compreender;
tudo vai fazer sentido e a dor será só um mero detalhe. Resistir só tornará
tudo muito pior.
Ângelo tentou pela última vez se
libertar, mas quanto mais ele tentava pior ficava a dor e por mais que a voz
das sombras estivesse falando sobre transformação, o que ele sentia era que
estava sendo devorado.
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