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O Tentador -- Capítulo 8 -- Érebus.




Ângelo abriu os olhos no meio da madrugada, o quarto estava escuro e tinha ficado totalmente sem sono de repente. Virou-se para o lado e percebeu que Diana não estava lá, devia ter se levantado para buscar um copo d’água ou para ir ao banheiro.
Ele girou novamente sobre a cama tentando fazer com que o sono voltasse, mas parecia que ia passar o restante da madrugada acordado. Ficou deitado um tempo com os olhos abertos e olhando para o teto enquanto pensamentos vagos e sem importância pairavam em sua mente. Também ficou com sede e resolveu descer para beber um gole de água gelada.
Antes, sentou na cama e recebeu a suave brisa que vinha do ventilador girando junto da parede. Ficou um tempo sentado no escuro, não havia luz alguma acesa, mas os olhos estavam perfeitamente adaptados à falta de luminosidade. A boca e os lábios estavam muito secos e tentou umedecê-los rapidamente usando a língua, mas não foi suficiente. Realmente precisaria se hidratar.
Ao se levantar da cama pensou que o quarto estava ligeiramente diferente do que no momento em que se deitara para dormir, mas não sabia identificar exatamente o que é que estava fora do lugar; talvez algo estivesse faltando, mas não seria capaz de dizer com precisão o quê. Caminhou em direção a porta do banheiro, precisava se aliviar antes de descer até a cozinha e tomar seu refrescante pouco de água. Tinha o habito de beber muita água durante o dia, geralmente procurava tomar oito copos, às vezes era um pouco mais e outras vezes um pouco menos; portanto costumava também acordar uma ou duas vezes por madrugada para ir ao banheiro, mas não em todos os dias.
Abriu a porta do banheiro, ela não fez nenhum ruído; o cômodo estava totalmente imerso na escuridão exatamente como o quarto.Acendeu a luz com um toque sutil no comutador, ao mesmo tempo a luz se fez presente.
Ângelo acendeu a luz apenas por instinto, sentiu-se um pouco incomodado com a total falta de luminosidade no banheiro, mas não era nada sério, além do mais, não poderia urinar se a luz estivesse apagada.
O banheiro já claro estava exatamente como antes, nada fora do lugar como parecia estar no quarto. A primeira coisa que Ângelo fez quando entrou e fechou a porta foi olhar para o espelho, pensou que fosse sentir alguma sensação estranha ou ver novamente alguma coisa, mas não aconteceu absolutamente nada. Tudo estava perfeitamente em ordem.
Provavelmente as visões que teve tanto na garagem quando guardava o carro quanto no espelho do banheiro foram apenas provocadas por estresse pelo fato de ter passado por todo aquele processo que acabou fazendo com que ele tirasse a vítima da batida de dentro do carro, assim como toda a tensão que sentira quando teve de revelar seu segredo para Diana. Era bem possível que essa mistura certamente explosiva tinha mexido com a mente dele, e somando-se a tudo isso o cansaço, o resultado fora aquele. Duas visões perturbadoras num único dia.
Agora, porém, depois de algumas boas horas de sono revigorante após um banho, que se não foi completamente relaxante, pelo menos ajudou um pouco; ele estava parcialmente recuperado. Não havia mais fantasma algum no espelho e ele até duvidou se de fato tinha visto realmente alguma coisa. Ângelo até sorriu lembrando-se do susto que levou.
Depois que terminou de urinar, ele lavou as mãos e em seguida juntou novamente um pouco de água da torneira com as mãos em concha, jogou no rosto e enxugou com a toalha. Saiu do banheiro e deixou a luz acesa.
Nas vezes em que dormiu na casa de Diana ele sempre ouvia durante a noite caso ela se levantasse da cama e fosse ao banheiro ou descesse por qualquer motivo; até mesmo o estalar dos móveis às vezes eram capazes de acordá-lo, tinha um sono bem leve e ao menor sinal de movimento ele costumava despertar. Dessa vez aquilo não aconteceu e para ele era uma prova do quanto estava cansado.
Ângelo era o tipo de pessoa cujo corpo costuma acumular cansaço continuamente e sem reclamar ou dar sinal algum até que um dia ele se sentia muito exausto e acabava sendo vencido pelo sono. Geralmente ele não precisava dormir muitas horas por noites para recuperar as forças, mas pelo menos uma vez a cada dois ou três meses acabava precisando dormir mais horas do que o habitual, nessas ocasiões, por volta das sete ou oito horas da noite ele simplesmente caia na cama e desligava. Era o seu modo peculiar de recarregar as bateria, já estava acostumado com aquilo. Na verdade até gostava, tinha acostumado seu corpo com essa rotina desde a adolescência.
Saiu do banheiro com a sede falando em seus ouvidos, a garganta também estava seca. A madrugada estava um pouco quente demais para aquela época do ano, mas não tanto que pudesse ser um incomodo de verdade.
Diana não costumava ligar o aparelho de ar refrigerado amenos que o dia ou a noite estivesse beirando os quarenta graus, algo que geralmente acontecia com relativa frequência no verão carioca, mas a relutância dela em usar o aparelho era muito em função de sentir que o nariz, boca e garganta ficavam muito secos e às vezes até doíam durante a madrugada, por isso evitava o máximo que podia.
Ângelo passou novamente pela cama contornando-a e recebeu outra vez a gostosa brisa do ventilador cuja cabeça girava constantemente da esquerda para a direita como se fosse uma sentinela do quarto às escuras, vigiando todos os movimentos das coisas e pessoas no quarto durante toda a madrugada, quer fossem animadas ou inanimadas. Passou pela porta do quarto para o corredor que levava à escada de descida; também nenhuma luz acesa ali.
No corredor ficava a porta do escritório de Diana; Ângelo experimentou a maçaneta, estava aberta, mas o lugar também estava totalmente escuro, ele acendeu a luz e olhou toda a extensão do cômodo pequeno e apinhado de livros em estantes; tinha uma janela ampla trabalhada em armação de alumínio e vidro com película para filtrar a luz solar durante o dia. A janela dava visão para a casa do vizinho dos fundos, mas durante a noite não era possível ver nada através dela. Somente a escuridão de fora.
Além daquilo havia também uma estação completa de trabalho com a mesa apropriada em “L” num dos cantos da parede próxima da janela, a mesa possuía várias gavetas e sobre ela estavam o computador pessoal de Diana e o notebook também; assim como pequenos cilindros de alumínio repleto de lápis multicoloridos, canetinhas, canetas esferográficas diversas, vermelhas pretas e azuis; pilot e canetas retroprogetor. Também havia réguas, elásticos, pequenos prendedores metálicos para papel, borrachas e uma infinidade de outras miudezas perfeitamente arrumadas segundo seus gêneros. Ela usava todo aquele material, mas ele ignorava completamente como.
No outro canto havia uma espécie de pequeno armário branco de madeira que se assemelhava muito aos antigos arquivos de ferro muito usados em repartições públicas, porém aquele era de uma madeira fina e muito bem produzida; com quatro grandes gavetas. Diana tinha bom gosto e arrumou todo o escritório de forma a deixar tudo com um ar bem ordenado.
Sobre o arquivo de madeira estavam três porta-retratos com molduras idênticas em preto e prata; num havia a foto de Diana com a mãe e o pai numa viagem que fizeram a Recife, na foto, ela era apenas uma criança, pois já fazia muito tempo que tinham ido a Pernambuco, porém Diana mantinha a foto ali porque dizia que fora a melhor viagem de sua infância.
No outro porta-retratos estava uma foto dela com Ângelo tirada na praia de Copacabana, Rio de Janeiro, logo que começaram o namoro. Na foto estavam os dois em primeiro plano no calçadão da Avenida Atlântica, estavam abraçados e sorridentes e ao fundo a areia e o mar mais ao longe. Eles adoravam Copacabana.
E no terceiro porta-retratos, uma foto tirada no aniversário de Ingrid. Diana fora convidada juntamente com o namorado e na foto estavam toda a família da menina e mais eles dois; foi tirada por um vizinho da família que também compareceu na festividade a convite de Heloi. A foto mostrava todos embaixo da árvore do quintal, sorrindo como se o mundo fosse perfeito. Naquele dia pareceu perfeito. E havia tanta alegria representada ali que Diana colocou-a também em seu cantinho particular das melhores lembranças imortalizadas.
Ângelo também tinha uma foto daquela em seu quarto, todos que estiveram na festa receberam uma. Ele fechou a porta do escritório e seguiu para a escada.
Quando olhada a partir do patamar superior onde ele estava, para baixo, a escada parecia muito maior do que realmente era; possuía treze degraus, mas era como se tivesse dezenove ou vinte, uma ilusão causada apenas pelo fato dos degraus serem muito longos. Ângelo desceu coçando o olho com uma mão e segurando o corrimão de madeira polida com a outra. Toda a casa estava às escuras, mas uma claridade pálida pairava lá no andar de baixo vindo a partir da cozinha.
A escada levava para a sala e à direita dela estava a cozinha, acesa. Ângelo entrou na cozinha e viu que o fogão tinha uma de suas quatro bocas acesa com uma chaleira encima já com a água fervendo em seu interior. Vapor d’água saía pelo bico da chaleira como um pequeno spray quente vindo das regiões mais ardentes do centro da terra.
Diana não estava em lugar algum, a menos que estivesse escondida na sala escura o que era pouco provável.
Ângelo piscou algumas vezes e foi até a geladeira pensando o que Diana estava pretendendo fazer com aquela chaleira no fogo àquela hora da madrugada, talvez um chá. Abriu a geladeira e se assustou com o que viu.
Não havia absolutamente nada dentro do eletrodoméstico, exceto duas garrafas de água e um copo, nada mais; nem prateleiras, nem gaveta, absolutamente nada. Ângelo olhou ao redor e desistiu da água, alguma coisa estava fora do lugar ali também. Diana jamais deixaria sua geladeira daquele jeito.
O que estaria acontecendo afinal?
Fechou a geladeira e foi até o fogão onde apagou o fogo fazendo com que o vapor de água parasse de sair pelo bico da chaleira quase que imediatamente. Coçou a cabeça, confuso.
_ Dianaaa!_ chamou; nem muito baixo nem muito alto.
Não houve resposta.
_Dianaaaa!!_ chamou mais uma vez um pouco mais alto do que na primeira.
Silêncio.
_ Onde essa mulher se meteu?_ perguntou para si mesmo.
Seu olhar correu por parte da cozinha e principalmente pela porta que dava passagem à lavanderia externa junto da garagem; estava fechada, mas ele experimentou a maçaneta também só por desencargo de consciência. Trancada.
Diana não estava ali; ele ia acender todas as luzes da casa e subir novamente.
Quando se virou o susto foi ainda maior do que quando achou a geladeira sem nada além de água.
Parado bem na passagem entre a cozinha e a sala estava um homem que, embora estranho, era alguém que ele já vira antes. O homem do parque de diversões.
Rapidamente o sangue de Ângelo pareceu gelar dentro das veias e artérias. Tentou falar algo, mesmo sem saber o quê. A voz não saiu, ficou presa na garganta.
_ Deixa que eu começo._ disse o estranho colocando o dedo indicador na frente da boca como que pedindo para que Ângelo permanecesse em silêncio._ temos muito o que conversar e o tempo é curto para nós dois.
Ângelo tentou se mover, mas logo percebeu que também não era mais capaz de fazê-lo. De uma hora para outra perdera completamente todos os movimentos do corpo e permanecia apenas parado, mesmo fazendo um grande esforço. Os músculos pareciam entorpecidos sob o efeito de algum narcótico poderoso.
O estranho trajava roupas escuras, casaco e calça de moletom preto assim como meias grossas da mesma cor; não usava chinelos, luvas, tênis ou qualquer outra coisa; nem relógio, nem cordão. Nada.
_ Me chamo... e estou aqui para fazer uma proposta a você_  o estranho começou a falar, mas Ângelo não escutou quando o outro pronunciou o nome, o som não chegou até seus ouvidos. Foi como se uma bolha de vácuo tivesse surgido e sumido em milésimos, engolindo apenas o nome do estranho.
O outro continuava falando:
_ Desde que vi você naquele parque de diversões fiquei intrigado, vi o que você fez, acompanhei tudo, todo o salvamento. Soube naquele dia que você era uma pessoa especial; tão especial quanto eu, talvez até mais.
O homem de moletom preto entrou na cozinha com um passo comedido, pareceu ter medo que a luz do cômodo o transformasse em num monte de cinzas caso fosse tocado por ela, mas nada daquilo aconteceu. Ele avançou apenas um passo e saiu da penumbra na passagem para a sala.
Ângelo viu algo se mexendo na escuridão da sala e pensou que fosse a namorada.
_ Dianaa!_ chamou por ela, a voz saiu normalmente, mas não obteve resposta.
Sem se incomodar com o chamado de Ângelo, o outro continuava falando como se eles dois fossem as últimas pessoas na face da terra.
_ Ouça, Ângelo, você tem um dom, um dom maravilhoso que pode ser usado apenas de duas formas. Você pode mantê-lo sob controle, do jeito que está agora ou, pode desenvolvê-lo o máximo que for possível.
Ângelo pensava em como aquela pessoa podia ter entrado na casa daquele modo tão sorrateiro sem ser percebido; lembrou que a porta que dava passagem para a área externa da garagem ainda estava fechada. Como ele entrou? Onde estava Diana?
_Se você escolher manter seu dom sob controle, em segredo, como tem feito até hoje, ele vai hibernar por longos períodos como já aconteceu e vez por outra vai ressurgir cada vez mais forte e diferente, trazendo informações que os homens comuns com suas vidas limitadas não conseguem alcançar; coisas que poderão ocorrer, como um acidente, um assalto, um abuso; uma catástrofe, uma enchente, um deslizamento, um terremoto, destruições por vento, incêndios ou um simples ato que desencadeie um efeito cataclísmico. Talvez ele lhe mostre apenas coisas normais, porém ocultas das demais pessoas, como sonhos escondidos, reais intenções, sentimentos aprisionados, desejos sombrios e coisas desse tipo. E ainda há a possibilidade de que você veja as criaturas que estão por toda parte, mas não podem ser vistas, como as entidades das sombras, os espíritos da natureza ou do caos, e até mesmo os anjos e os demônios.
Assim que ouviu aquilo Ângelo se lembrou involuntariamente de suas duas últimas visões; a criatura disforme e pulsante na garagem onde estava o carro de Diana e também o rosto medonhamente maníaco refletido no espelho do banheiro. Por um momento teve a sensação de que seus olhos podiam ter realmente visto dois seres sobrenaturais, quem sabe, dois deuses do submundo. Pelo que ele sabia, podia ser até mesmo duas faces distintas da mesma criatura.
O homem de preto continuava falando como se seu tempo fosse realmente muito curto e ele já estivesse atrasado em transmitir toda a informação que tinha.
_ Porém, dessa forma você pode perdê-lo. Perder um dom poderoso como esse é abrir mão da maior dádiva que um homem pode ter. É abrir mão de poder.
Como ele sabia sobre seu segredo? _Pensou Ângelo.
Ele testou a voz para ver se ela ia funcionar e pigarreou para desobstruir a garganta.
_ Quem é você afinal?_ perguntou Ângelo_ Como entrou aqui? E como sabe sobre meu segredo?
Os olhos do outro brilharam quando ele ouviu as perguntas. Podiam chegar a um acordo, afinal.
_Antes_ disse erguendo o dedo mais uma vez como se estivesse pedindo a atenção total de Ângelo para o que seria dito em seguida_ Por outro lado você pode escolher desenvolver seu dom e nisso eu posso ajudá-lo. Imagine doutrinar seus sentidos de modo que você não só saiba como receber suas visões, sentimentos e sensações, mas também saiba controlar tudo isso, tirar o máximo proveito; escolher de quem você deseja saber toda e qualquer informação. Não seria divino?
_ Divino?_ Ângelo repetiu a palavra em tom de dúvida.
_ Pessoas comuns não têm essa possibilidade; se entender seu dom poderá descobrir tantos segredos sobre o mundo que o cerca e as pessoas que nele vivem que, salvamentos como o da menina no parque serão coisa simples para você. Poderá salvar multidões ao invés de se limitar a resgatar uma pessoa por vez, eventualmente.
A boca ainda estava seca e a sede ainda pedia para ser saciada.
O outro ainda falava:
_Já pensou nisso? Ângelo. Acredite em mim quando digo que você tem o potencial para evoluir mais do que a mente humana com suas pseudociências podem sequer imaginar. Você poderá ser um deus entre os insetos se assim desejar e eu estou oferecendo o caminho para que isso aconteça. Entende o que estou falando a você?_ O tom de voz do outro era quase de uma suplica religiosa. Ele disse_ Tudo isso eu posso te dar.
Ouvindo e entendendo, mas ignorando grande parte do que foi dito Ângelo perguntou:
_ Onde está Diana?
Com certa impaciência transparecendo na face o outro finalmente respondeu de forma clara:
_ Em breve você vai vê-la novamente, ela está dormindo no quarto, você não a viu quando levantou?
Lembrou a da cama vazia ao seu lado.
Ele tentou se mover, mas o corpo ainda não obedecia.
_ Por que estou preso aqui?
_ Entenda, não posso sair daqui hoje sem uma posição sua meu jovem e só o libertarei quando obtiver tal resposta.
Ângelo ponderou:
_ Quem é você?_ perguntou novamente._ as coisas na cozinha não pareciam às mesmas de quando ele entrou na casa com a namorada, e naquele momento ele percebia que a luz brilhava de forma diferente do habitual, quase como uma luz falsa. Jamais saberia explicar aquilo.
Ignorando a última pergunta de Ângelo o outro recomeçou.
_ Pense bem rapaz, imagine ter em suas mãos o poder para fazer tudo da forma como bem entender, dobrar o mundo segundo sua vontade e a realidade de acordo com seus pensamentos. Seria ou não seria ótimo? Pense!
_Por que motivo eu ia querer uma coisa dessas?_ a idéia era tão estapafúrdia que talvez só a tivesse imaginado em seus sonhos mais estranhos e delirantes. Mas a verdade era que aquilo jamais tinha passado por sua mente. Para Ângelo, sua capacidade de descobrir coisas ocultas devia ser um distúrbio qualquer; quem poderia saber quanto poder está encerrado na mente humana? E como só ocorria poucas vezes passando por longos períodos de hibernação como o outro mesmo tinha dito; ele não se preocupava tanto com aquilo até que aconteceu no parque e na batida da estrada naquela mesma noite.
A resposta foi automática como se já soubesse o conteúdo da pergunta.
_ Você poderia salvar muitas mais pessoas. Da forma como está, você é limitado por suas redomas morais, medos, dúvidas, crenças e incertezas. Mas permita-me mostrar o caminho, abrir as portas e remodelar você de um simples homem com potencial, para um deus urbano.
As palavras “salvar pessoas” ficaram ecoando na mente dele com uma velocidade alucinante. Salvar pessoas era como uma vocação intrínseca esperando para se manifestar, embora ele não tivesse total conhecimento disso.
_ Sabe por que você se sente tão incomodado com o fato de fazer coisas que os outros não fazem?_ continuou o estranho_ É porque no fundo de seu ser você sabe que deveria fazer mais, ser mais, ter mais. Então seja, faça e tenha! Essa é a hora e eu sou seu passaporte para a glória definitiva. Todos os reinos da terra eu te darei se me pedires.
_ Você está me pedindo para ser um deus? É isso?_ Ângelo pronunciou a frase com o máximo de cuidado que pôde, porque soava desproporcionalmente arrogante, megalomaníaca. Na cabeça dele nenhum homem poderia sequer imaginar uma loucura como essa. Querer para si as prerrogativas de uma divindade. Que loucura!
Ângelo desviou o olhar por um segundo e vislumbrou por cima do ombro daquele com quem falava, ao fundo. Bem no limiar entre a sala e a cozinha, havia algo grande, algo como um vulto sombrio ou translúcido se esgueirando sorrateiramente como se estivesse bisbilhotando a conversa, mas ao mesmo tempo com medo de passar para o lado da luz. O rapaz piscou rapidamente e, fosse aquilo o que fosse, não estava mais lá no momento seguinte.
_ Então me diga por que e para que você tem esse maravilhoso dom?_ A resposta do estranho foi outra pergunta.
Ângelo não tinha uma contra-resposta para contestar ou sequer tinha qualquer outro argumento. Emudeceu.
O tom da voz do outro ficou grave e urgente.
_ Existe um grande mal se aproximando da sua vida, Ângelo, e se ele não conseguir seduzir você, então, vai levá-lo à força e em seguida atacar todos em seu redor. Imagine; Diana, Ingrid e suas respectivas famílias. Todos vão ser atingidos.
_ Mentira!_ Disse indignado. Afinal aquilo não tinha o menor cabimento.
O estranho avançou mais um passo na direção de Ângelo.
_A única forma de passar por isso com poucos danos violentos será se você aceitar a natureza de seu dom e abraçar sua vocação; fogo se combate com fogo, e trevas com trevas. Se sua moralidade o detiver agora, se seu senso de bem e mal o impedir de aceitar meu convite certamente você sofrerá desnecessariamente assim como muitos em seu redor, tanto conhecidos quanto desconhecidos. Mas ainda há tempo.
Ângelo lembrou do sonho repetido que sempre tivera com a mulher desconhecida gritando em agonia extrema. Seu coração apertou; podia ser Diana, podia ser qualquer pessoa que conhecia, ou mesmo que não fosse; jamais queria presenciar aquela cena onírica terrível na vida real. Seu maior medo era ter o poder para salvar uma pessoa e mesmo assim não ser capaz de fazê-lo e no fundo ele temia que aquilo um dia ainda pudesse acontecer.
_ Que mal?_ perguntou com uma ponta de aceitação nascendo em seu interior._ Lembrou-se das pessoas que o reconheceram no shopping e da prima de Ingrid; Karen, o pai e a mãe dela.
_O Caos, Ângelo; o Caos.
Antes que Ângelo pudesse tecer qualquer comentário a respeito o outro continuou falando. Seu tempo estava quase no fim.
_Você está sendo procurado por uma pessoa e ela já está bem próxima de lhe encontrar. Também por isso estou aqui.
_ Pessoa? Que pessoa?_ finalmente foi mais rápido do que o outro para conseguir falar.
A resposta foi soturna:
_Uma sombra. Um assassino.
_Sombra?!
_ A mando dessa entidade; o Caos. O próprio assassino nem sabe ao certo a que propósito esta servindo, ele pensa que foi solto única e exclusivamente para matar uma mulher.
_ E o que eu tenho com isso?_ Toda aquela conversa estava muito fora dos padrões, Ângelo sentia-se como se uma brecha espaço-temporal tivesse surgido enquanto ele dormia e o houvesse puxado para outra realidade muito mais estranha. Levando em conta as coisas fora do comum que estavam acontecendo com ele nas últimas horas não seria de se admirar.
Ele não entendia que tipo de ligação poderia ter com o tal assassino ou com a tal entidade. Considerando que tudo aquilo fosse real.
_ O dom que você tem, enquanto estiver ativo, vai atrair o assassino para sua vida, é apenas uma questão de tempo até que ele encontre você, todas as coisas estão se arranjando para que isso ocorra. Sua opção única é torcer para que seu dom volte a dormir e passe o maior tempo possível assim. Do contrário será uma presa fácil. É por isso que estou aqui lhe oferecendo essa oportunidade; torne-se como um de nós, una-se com a nossa legião. Porque no fundo você sabe que isso vai acontecer de uma forma ou de outra.
_Não compreendo uma só palavra do que você diz.
O estranho avançou mais um passo e finalmente ficou bem próximo, frente a frente, com Ângelo que tentava desviar o olhar, mas não conseguia; algo nos olhos do estranho era terrivelmente familiar. Ângelo sentia como se estivesse face a face consigo mesmo. Era uma sensação por demais insólita.
_ Sou sua melhor chance._ disse o outro_ Para salvar Diana, Ingrid e a família; e até mesmo a sua família. Eu sou o caminho para deter esse mal; torne-se o mal. Se você aprender a desenvolver e controlar seu dom, vai poder escondê-lo tanto do Caos quanto de seus assassinos, se assim você quiser, e com um pouco de sorte sua vida vai permanecer tão comum quanto está agora, porém você vai ter muito mais recursos para fazer o que bem entender ou não fazer nada se for esse o seu desejo.
Ângelo pensou nos pais e em Miguel, seu irmão mais novo. As faces de todos eles atravessaram seus pensamentos como raios vindos de alguma nuvem carregada dentro de sua mente.
_ Isso é loucura! Loucura!_ precisou repetir a palavra para conseguir crer nela.
O estranho começou a recuar. Um passo.
_ Loucura é você não admitir que é um ser especial. Saiba disso: Seu dom não é mental como você pensa, ele é muito mais profundo, muito mais primordial e poderoso do que você pode imaginar. Por esse motivo, essa essência caótica fez contato com você em um nível subconsciente, é isso o que ela faz; procura pessoas como você e as “arrebata” para serem seus escravos. A verdade é que o Caos é a origem e a finalidade do seu dom.
O estranho fez um sinal com os dedos das mãos para representar as aspas quando pronunciou a palavra, arrebata. Em seguida recuou mais um passo.
_ Isso só pode ser um sonho_ disse Ângelo.
_ E é._ Afirmou o outro. Recuou novamente e agora estava no ponto exato onde tinha iniciado toda aquela conversa; no limiar entre a cozinha iluminada com a luz falsa e a sala completamente às escuras._ Preciso de sua resposta rapaz. Vai se unir a nós por vontade própria ou será devorado?
Ângelo logo percebeu que já podia se mover novamente; seu corpo não estava mais sob a paralisia forçada que o manteve preso nos minutos anteriores.
_ Sua bela namorada vem vindo aí.
_ O quê?!
_ Preciso da resposta, agora.
Tentando não se confundir entre perguntas e respostas em sua cabeça ele respondeu da única forma que julgava ser correta, fosse aquilo um sonho ou não.
_ A resposta é não.
_ Pense bem.
_ Eu disse não!
O estranho ficou visivelmente insatisfeito, mas deixou escapar um sorriso matreiro.
_ Imaginei que você diria isso, mas eu tinha de tentar. Nosso primeiro contato foi mais amigável do que eu supunha inicialmente. Porém, os próximos não serão assim.
_Seja lá quem você for; é maluco.
O outro recuou mais um passo e as sombras na sala pareceram o abraçar, fazendo com que quase não pudesse ser visto. O jovem teve a nítida sensação de que vários olhos ávidos o observavam das sombras na sala, mas não podia ver nada que comprovasse isso.
_ Espero que possamos nos encontrar o mais breve possível._ O estranho disse das sombras.
Ângelo ia contestar falando alguma coisa, mas acordou.
Percebeu que tudo aquilo não passava de um sonho surreal, ou talvez não. Levantou da cama e correu para o andar de baixo, mas antes praticamente refez seus passou assim como no sonho. Estava muito confuso.

***
Diana acordou e logo percebeu que o namorado não estava deitado ao seu lado; a luz do banheiro permanecia acesa e as portas do banheiro e do quarto estavam abertas. Ela esfregou os olhos e se levantou o mais rápido que pôde; foi ao banheiro e constatou que Ângelo não estava lá. Apagou a luz e acendeu a do quarto, saiu pela porta, passou pelo corredor e desceu os degraus da escada com uma curiosidade crescente se desenvolvendo em seu interior. A cozinha estava acesa.
Logo que chegou à cozinha o viu parado bem no meio do cômodo; imóvel e concentrado como se estivesse querendo escutar algo subliminar no próprio ar.
_ O que está fazendo aqui amor, são cinco horas da manhã._ Diana ainda mantinha o semblante sonolento.
Ele não respondeu.
_ Ângelo!
Acordando do que parecia ser um transe passageiro, o namorado finalmente deu sinal de que estava ouvindo.
_ O quê foi?!
_ O que você está fazendo aí parado?
Finalmente ele se moveu e foi até a geladeira, abriu a porta e pareceu observar tudo o que tinha lá dentro cuidadosamente, a geladeira estava repleta. Ele pegou uma das duas garrafas d’água e fechou a porta.
_Vim beber água. _mentiu.
Ela relaxou um pouco mais.
_ Ficou sem sono foi?_ o tom era de brincadeira.
Ele pegou um copo e colocou água vagarosamente, como se estivesse ponderando alguma coisa para falar. Disse:
_ Tive um sonho muito estranho.
A tensão reapareceu. Diana caminhou até ele, deslizou a mão sobre o ombro do namorado fazendo um afago carinhoso e passando por detrás dele pegou um copo também.
_ Um pesadelo?
_Não; um sonho estranho.
_Estranho como?_ ela pegou a garrafa de vidro que ele tinha colocado sobre a mesa e derramou um pouco de água para si.
Ângelo ainda bebia quando ela fez a pergunta e logo que engoliu a última gota tratou de procurar acalmá-la. Depois do episódio da batida e do salvamento na estrada ele sabia que Diana estava trabalhando com um nível incomum de preocupação e não queria que ela se estressasse mais do que o que já estava. Teria que mentir mais.
Ele contou todo o sonho, mas teve o trabalho de omitir a parte da conversa que teve com o estranho; disse apenas que, no sonho, tinha se levantado, procurado por ela e não havia encontrado; com isso, saiu pela casa procurando a partir do banheiro, escritório, sala e foi parar na cozinha onde a chaleira estava no fogo e a luz estava acesa. Então, logo que despertou sentiu sede e foi beber água.
_Só isso?_ perguntou a namorada ainda em dúvida.
_ É só o que me lembro._ sentiu-se péssimo por mentir para Diana, mas não tinha certeza absoluta de que seu encontro com o estranho tinha sido somente um sonho. Tudo parecia tão real que ele resolveu não revelar, por enquanto, até pensar bem a respeito e decidir o que fazer. Obviamente mesmo que fosse verdade ele jamais aceitaria uma proposta tão perniciosa quanto aquela.
Por hora ele teria mais um segredo para guardar.
_Não me parece um sonho tão estranho._ ela bebeu um gole da água logo que terminou de falar.
_ Sei. Mas é que foi um sonho bastante real. E quando não achei você deitada ao meu lado fiquei confuso.
_ Você só está cansado, vamos deitar._ ela abriu novamente a geladeira e guardou a garrafa.
Ângelo não estava mais tão cansado quanto antes e o sonho ainda continuava recente na mente dele, tinha sido muito vívido e cada uma das palavras do estranho permaneciam se repetindo ininterruptas vezes.
Percebendo que o namorado estava meio absorto, Diana disse quando já estava saindo da cozinha:
_Seja o que for que você está escondendo aí, estou aqui para conversar se você quiser.
Ele não conseguia enganá-la, mas não ia contar nada, não àquela hora. Talvez quando o sol surgisse.
Diana saiu da cozinha na frente caminhando lentamente e subiu os degraus de volta ao andar superior para tentar aproveitar o restante da madrugada que já estava quase no fim. Em pouco tempo a claridade do novo dia já poderia ser vista pelas janelas e em seguida a luz dourada do sol também apareceria para banir o restante das sombras no mundo lá fora.
Ângelo ficou parado durante mais alguns minutos no mesmo lugar em que sonhou que estava, ficou olhando para a passagem da cozinha para a sala de onde o outro havia aparecido e conversado com ele. Fez aquilo como se estivesse tentando criar uma reconstituição do sonho. Uma reconstituição que lhe revelasse algo que ele não percebeu.
Ficou olhando para a sala escura e teve a sensação de que ela estava pouco mais clara do que antes, provavelmente a claridade do dia estivesse começando a se insinuar fora da casa, não tinha certeza. Lembrou-se do grande vulto translúcido que vira brevemente se escondendo por detrás do estranho sem querer enfrentar a luz falsa do sonho. Só agora estava entendendo o motivo de achar que a luz estava brilhando de modo diferente; era um efeito provocado pelo sonho, algo que mostrava que tudo aquilo não era de todo real.
Finalmente ele desligou a luz da cozinha e saiu, foi até a sala atravessou o cômodo e foi até a porta, experimentou a maçaneta. Trancada como as demais. Voltou subindo pela escada em direção ao quarto com as mesmas dúvidas marretando os pensamentos.
Será que ele tinha criado aquele sonho? Será que tinha inventado toda aquela história sobre seu dom? Tudo o que foi dito era absurdo por demais para ser levado totalmente em consideração.
Aquele foi o primeiro momento em que Ângelo teve a nítida percepção de que estava com a sua sanidade em perigo.
Subiu e entrou no quarto onde dessa vez Diana estava deitada na cama e já parecia estar dormindo, ela dormia virada para o outro lado. Ângelo procurou fazer o mínimo de barulho possível ao se deitar. Não ia mais conseguir dormir e ficaria ali deitado esperando que o dia clareasse totalmente para decidir o que ia fazer.


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A criação de um personagem principal exige atenção redobrada do escritor ao desenvolver sua trama, a ponto de muitas vezes um personagem ser capaz de segurar os leitores mesmo quando uma trama não é tão boa assim. Muitos autores acham que escrever um livro é simplesmente contar um relato em que um determinado personagem faz as coisas e pronto, mas isso não costuma funcionar e tem como resultado livros que não conseguem atingir seus leitores da forma correta. Escritores que pensam deste modo costuma apresentar em seus livros personagens sem muita profundidade ou carisma e isso é a fórmula para que seu livro fracasse. A magia de um livro bem escrito passa pela técnica da verossimilhança e no desenvolvimento de seu personagem principal, sobretudo, não é diferente. Mas o que seria isso, verossimilhança? Muito simples. Verossimilhança é a arte de tornar seu personagem o mais próximo possível da realidade a ponto de realidade e ficção se confundirem. Alguns autores famosos ou anônim

Escritores não estudam gramática. -- Dicas para escritores iniciantes

Na primeira vez que me deparei com esse conceito achei que não fazia sentido, mas a verdade, por mais estranho que possa parecer, é que grandes escritores não estudam gramática, eles se preocupam muito pouco em escrever perfeitamente ou de maneira erudita, respeitando e seguindo todas as regras gramaticais; isso acontece porque eles entendem que precisam usar seu tempo e energia para desenvolver algo que para eles é muito mais importante e relevante do que a gramática. E o que seria isso? A própria escrita.   Escritores estudam escrita . Professores e linguistas estudam a gramática; e por mais que exista uma proximidade entre eles, na medida em que ambos manuseiam as letras e as palavras de alguma forma, a arte do escritor não está em conhecer profundamente o seu idioma, mas sim em saber como usá-lo de maneira eficiente para contar uma história, quer seja de ficção ou não; que seja cativante e envolvente; ou transmitir informações caso escreva sobre temas técnicos. Escritores n

Serpente marinha

_O que poderia ser aquilo? As duas bolas incandescentes vinham em alta velocidade dentro da água do mar em direção ao navio, a fragata União, designada também pelo alfa numérico F-45. O alarme disparou momentos atrás por um dos sentinelas e chamou grande parte da tripulação ao convés, todos estavam muito aflitos para saber o que poderia ser aquelas duas bolas semelhantes a anéis de fogo navegando pouco abaixo da superfície d’água. Era noite e o navio seguia do Rio de Janeiro para Miami; estavam agora em águas caribenhas. Os sonares estavam captando algo que aumentava de tamanho conforme se aproximava, era uma coisa muito grande. Não parecia-se com nada que a tripulação experiente já tivesse visto em muitos anos de mar. A correria aumentou em todos os postos de combate, a sirene soou mais uma vez e anunciava posições de batalha, soldados foram alocados no convés do navio munidos de armas, outros começaram a preparar torpedos e minas de profundidade. Dois alertas foram emitidos;