Ângelo abriu os olhos no meio da
madrugada, o quarto estava escuro e tinha ficado totalmente sem sono de
repente. Virou-se para o lado e percebeu que Diana não estava lá, devia ter se
levantado para buscar um copo d’água ou para ir ao banheiro.
Ele girou novamente sobre a cama
tentando fazer com que o sono voltasse, mas parecia que ia passar o restante da
madrugada acordado. Ficou deitado um tempo com os olhos abertos e olhando para
o teto enquanto pensamentos vagos e sem importância pairavam em sua mente.
Também ficou com sede e resolveu descer para beber um gole de água gelada.
Antes, sentou na cama e recebeu a suave
brisa que vinha do ventilador girando junto da parede. Ficou um tempo sentado
no escuro, não havia luz alguma acesa, mas os olhos estavam perfeitamente
adaptados à falta de luminosidade. A boca e os lábios estavam muito secos e
tentou umedecê-los rapidamente usando a língua, mas não foi suficiente.
Realmente precisaria se hidratar.
Ao se levantar da cama pensou que o
quarto estava ligeiramente diferente do que no momento em que se deitara para
dormir, mas não sabia identificar exatamente o que é que estava fora do lugar;
talvez algo estivesse faltando, mas não seria capaz de dizer com precisão o
quê. Caminhou em direção a porta do banheiro, precisava se aliviar antes de
descer até a cozinha e tomar seu refrescante pouco de água. Tinha o habito de
beber muita água durante o dia, geralmente procurava tomar oito copos, às vezes
era um pouco mais e outras vezes um pouco menos; portanto costumava também
acordar uma ou duas vezes por madrugada para ir ao banheiro, mas não em todos
os dias.
Abriu a porta do banheiro, ela não fez
nenhum ruído; o cômodo estava totalmente imerso na escuridão exatamente como o
quarto.Acendeu a luz com um toque sutil no comutador, ao mesmo tempo a luz se
fez presente.
Ângelo acendeu a luz apenas por
instinto, sentiu-se um pouco incomodado com a total falta de luminosidade no
banheiro, mas não era nada sério, além do mais, não poderia urinar se a luz
estivesse apagada.
O banheiro já claro estava exatamente
como antes, nada fora do lugar como parecia estar no quarto. A primeira coisa
que Ângelo fez quando entrou e fechou a porta foi olhar para o espelho, pensou
que fosse sentir alguma sensação estranha ou ver novamente alguma coisa, mas
não aconteceu absolutamente nada. Tudo estava perfeitamente em ordem.
Provavelmente as visões que teve tanto
na garagem quando guardava o carro quanto no espelho do banheiro foram apenas
provocadas por estresse pelo fato de ter passado por todo aquele processo que
acabou fazendo com que ele tirasse a vítima da batida de dentro do carro, assim
como toda a tensão que sentira quando teve de revelar seu segredo para Diana.
Era bem possível que essa mistura certamente explosiva tinha mexido com a mente
dele, e somando-se a tudo isso o cansaço, o resultado fora aquele. Duas visões
perturbadoras num único dia.
Agora, porém, depois de algumas boas
horas de sono revigorante após um banho, que se não foi completamente
relaxante, pelo menos ajudou um pouco; ele estava parcialmente recuperado. Não
havia mais fantasma algum no espelho e ele até duvidou se de fato tinha visto
realmente alguma coisa. Ângelo até sorriu lembrando-se do susto que levou.
Depois que terminou de urinar, ele
lavou as mãos e em seguida juntou novamente um pouco de água da torneira com as
mãos em concha, jogou no rosto e enxugou com a toalha. Saiu do banheiro e deixou
a luz acesa.
Nas vezes em que dormiu na casa de
Diana ele sempre ouvia durante a noite caso ela se levantasse da cama e fosse
ao banheiro ou descesse por qualquer motivo; até mesmo o estalar dos móveis às
vezes eram capazes de acordá-lo, tinha um sono bem leve e ao menor sinal de
movimento ele costumava despertar. Dessa vez aquilo não aconteceu e para ele
era uma prova do quanto estava cansado.
Ângelo era o tipo de pessoa cujo corpo
costuma acumular cansaço continuamente e sem reclamar ou dar sinal algum até
que um dia ele se sentia muito exausto e acabava sendo vencido pelo sono.
Geralmente ele não precisava dormir muitas horas por noites para recuperar as
forças, mas pelo menos uma vez a cada dois ou três meses acabava precisando
dormir mais horas do que o habitual, nessas ocasiões, por volta das sete ou
oito horas da noite ele simplesmente caia na cama e desligava. Era o seu modo
peculiar de recarregar as bateria, já estava acostumado com aquilo. Na verdade
até gostava, tinha acostumado seu corpo com essa rotina desde a adolescência.
Saiu do banheiro com a sede falando em
seus ouvidos, a garganta também estava seca. A madrugada estava um pouco quente
demais para aquela época do ano, mas não tanto que pudesse ser um incomodo de
verdade.
Diana não costumava ligar o aparelho de
ar refrigerado amenos que o dia ou a noite estivesse beirando os quarenta
graus, algo que geralmente acontecia com relativa frequência no verão carioca,
mas a relutância dela em usar o aparelho era muito em função de sentir que o nariz,
boca e garganta ficavam muito secos e às vezes até doíam durante a madrugada,
por isso evitava o máximo que podia.
Ângelo passou novamente pela cama
contornando-a e recebeu outra vez a gostosa brisa do ventilador cuja cabeça
girava constantemente da esquerda para a direita como se fosse uma sentinela do
quarto às escuras, vigiando todos os movimentos das coisas e pessoas no quarto
durante toda a madrugada, quer fossem animadas ou inanimadas. Passou pela porta
do quarto para o corredor que levava à escada de descida; também nenhuma luz
acesa ali.
No corredor ficava a porta do
escritório de Diana; Ângelo experimentou a maçaneta, estava aberta, mas o lugar
também estava totalmente escuro, ele acendeu a luz e olhou toda a extensão do
cômodo pequeno e apinhado de livros em estantes; tinha uma janela ampla
trabalhada em armação de alumínio e vidro com película para filtrar a luz solar
durante o dia. A janela dava visão para a casa do vizinho dos fundos, mas
durante a noite não era possível ver nada através dela. Somente a escuridão de
fora.
Além daquilo havia também uma estação
completa de trabalho com a mesa apropriada em “L” num dos cantos da parede
próxima da janela, a mesa possuía várias gavetas e sobre ela estavam o
computador pessoal de Diana e o notebook também; assim como pequenos cilindros
de alumínio repleto de lápis multicoloridos, canetinhas, canetas esferográficas
diversas, vermelhas pretas e azuis; pilot e canetas retroprogetor. Também havia
réguas, elásticos, pequenos prendedores metálicos para papel, borrachas e uma
infinidade de outras miudezas perfeitamente arrumadas segundo seus gêneros. Ela
usava todo aquele material, mas ele ignorava completamente como.
No outro canto havia uma espécie de
pequeno armário branco de madeira que se assemelhava muito aos antigos arquivos
de ferro muito usados em repartições públicas, porém aquele era de uma madeira
fina e muito bem produzida; com quatro grandes gavetas. Diana tinha bom gosto e
arrumou todo o escritório de forma a deixar tudo com um ar bem ordenado.
Sobre o arquivo de madeira estavam três
porta-retratos com molduras idênticas em preto e prata; num havia a foto de
Diana com a mãe e o pai numa viagem que fizeram a Recife, na foto, ela era
apenas uma criança, pois já fazia muito tempo que tinham ido a Pernambuco,
porém Diana mantinha a foto ali porque dizia que fora a melhor viagem de sua
infância.
No outro porta-retratos estava uma foto
dela com Ângelo tirada na praia de Copacabana, Rio de Janeiro, logo que
começaram o namoro. Na foto estavam os dois em primeiro plano no calçadão da
Avenida Atlântica, estavam abraçados e sorridentes e ao fundo a areia e o mar
mais ao longe. Eles adoravam Copacabana.
E no terceiro porta-retratos, uma foto
tirada no aniversário de Ingrid. Diana fora convidada juntamente com o namorado
e na foto estavam toda a família da menina e mais eles dois; foi tirada por um
vizinho da família que também compareceu na festividade a convite de Heloi. A
foto mostrava todos embaixo da árvore do quintal, sorrindo como se o mundo
fosse perfeito. Naquele dia pareceu perfeito. E havia tanta alegria
representada ali que Diana colocou-a também em seu cantinho particular das
melhores lembranças imortalizadas.
Ângelo também tinha uma foto daquela em
seu quarto, todos que estiveram na festa receberam uma. Ele fechou a porta do
escritório e seguiu para a escada.
Quando olhada a partir do patamar
superior onde ele estava, para baixo, a escada parecia muito maior do que
realmente era; possuía treze degraus, mas era como se tivesse dezenove ou
vinte, uma ilusão causada apenas pelo fato dos degraus serem muito longos.
Ângelo desceu coçando o olho com uma mão e segurando o corrimão de madeira
polida com a outra. Toda a casa estava às escuras, mas uma claridade pálida
pairava lá no andar de baixo vindo a partir da cozinha.
A escada levava para a sala e à direita
dela estava a cozinha, acesa. Ângelo entrou na cozinha e viu que o fogão tinha
uma de suas quatro bocas acesa com uma chaleira encima já com a água fervendo
em seu interior. Vapor d’água saía pelo bico da chaleira como um pequeno spray
quente vindo das regiões mais ardentes do centro da terra.
Diana não estava em lugar algum, a
menos que estivesse escondida na sala escura o que era pouco provável.
Ângelo piscou algumas vezes e foi até a
geladeira pensando o que Diana estava pretendendo fazer com aquela chaleira no
fogo àquela hora da madrugada, talvez um chá. Abriu a geladeira e se assustou
com o que viu.
Não havia absolutamente nada dentro do
eletrodoméstico, exceto duas garrafas de água e um copo, nada mais; nem
prateleiras, nem gaveta, absolutamente nada. Ângelo olhou ao redor e desistiu
da água, alguma coisa estava fora do lugar ali também. Diana jamais deixaria
sua geladeira daquele jeito.
O que estaria acontecendo afinal?
Fechou a geladeira e foi até o fogão
onde apagou o fogo fazendo com que o vapor de água parasse de sair pelo bico da
chaleira quase que imediatamente. Coçou a cabeça, confuso.
_ Dianaaa!_ chamou; nem muito baixo nem
muito alto.
Não houve resposta.
_Dianaaaa!!_ chamou mais uma vez um
pouco mais alto do que na primeira.
Silêncio.
_ Onde essa mulher se meteu?_ perguntou
para si mesmo.
Seu olhar correu por parte da cozinha e
principalmente pela porta que dava passagem à lavanderia externa junto da
garagem; estava fechada, mas ele experimentou a maçaneta também só por
desencargo de consciência. Trancada.
Diana não estava ali; ele ia acender
todas as luzes da casa e subir novamente.
Quando se virou o susto foi ainda maior
do que quando achou a geladeira sem nada além de água.
Parado bem na passagem entre a cozinha
e a sala estava um homem que, embora estranho, era alguém que ele já vira
antes. O homem do parque de diversões.
Rapidamente o sangue de Ângelo pareceu
gelar dentro das veias e artérias. Tentou falar algo, mesmo sem saber o quê. A
voz não saiu, ficou presa na garganta.
_ Deixa que eu começo._ disse o
estranho colocando o dedo indicador na frente da boca como que pedindo para que
Ângelo permanecesse em silêncio._ temos muito o que conversar e o tempo é curto
para nós dois.
Ângelo tentou se mover, mas logo
percebeu que também não era mais capaz de fazê-lo. De uma hora para outra
perdera completamente todos os movimentos do corpo e permanecia apenas parado,
mesmo fazendo um grande esforço. Os músculos pareciam entorpecidos sob o efeito
de algum narcótico poderoso.
O estranho trajava roupas escuras,
casaco e calça de moletom preto assim como meias grossas da mesma cor; não
usava chinelos, luvas, tênis ou qualquer outra coisa; nem relógio, nem cordão.
Nada.
_ Me chamo... e estou aqui para fazer
uma proposta a você_ o estranho começou a falar, mas Ângelo não
escutou quando o outro pronunciou o nome, o som não chegou até seus ouvidos.
Foi como se uma bolha de vácuo tivesse surgido e sumido em milésimos, engolindo
apenas o nome do estranho.
O outro continuava falando:
_ Desde que vi você naquele parque de
diversões fiquei intrigado, vi o que você fez, acompanhei tudo, todo o
salvamento. Soube naquele dia que você era uma pessoa especial; tão especial
quanto eu, talvez até mais.
O homem de moletom preto entrou na
cozinha com um passo comedido, pareceu ter medo que a luz do cômodo o
transformasse em num monte de cinzas caso fosse tocado por ela, mas nada
daquilo aconteceu. Ele avançou apenas um passo e saiu da penumbra na passagem
para a sala.
Ângelo viu algo se mexendo na escuridão
da sala e pensou que fosse a namorada.
_ Dianaa!_ chamou por ela, a voz saiu
normalmente, mas não obteve resposta.
Sem se incomodar com o chamado de
Ângelo, o outro continuava falando como se eles dois fossem as últimas pessoas
na face da terra.
_ Ouça, Ângelo, você tem um dom, um dom
maravilhoso que pode ser usado apenas de duas formas. Você pode mantê-lo sob
controle, do jeito que está agora ou, pode desenvolvê-lo o máximo que for
possível.
Ângelo pensava em como aquela pessoa
podia ter entrado na casa daquele modo tão sorrateiro sem ser percebido;
lembrou que a porta que dava passagem para a área externa da garagem ainda
estava fechada. Como ele entrou? Onde estava Diana?
_Se você escolher manter seu dom sob
controle, em segredo, como tem feito até hoje, ele vai hibernar por longos
períodos como já aconteceu e vez por outra vai ressurgir cada vez mais forte e
diferente, trazendo informações que os homens comuns com suas vidas limitadas
não conseguem alcançar; coisas que poderão ocorrer, como um acidente, um
assalto, um abuso; uma catástrofe, uma enchente, um deslizamento, um terremoto,
destruições por vento, incêndios ou um simples ato que desencadeie um efeito
cataclísmico. Talvez ele lhe mostre apenas coisas normais, porém ocultas das
demais pessoas, como sonhos escondidos, reais intenções, sentimentos
aprisionados, desejos sombrios e coisas desse tipo. E ainda há a possibilidade
de que você veja as criaturas que estão por toda parte, mas não podem ser
vistas, como as entidades das sombras, os espíritos da natureza ou do caos, e
até mesmo os anjos e os demônios.
Assim que ouviu aquilo Ângelo se
lembrou involuntariamente de suas duas últimas visões; a criatura disforme e
pulsante na garagem onde estava o carro de Diana e também o rosto medonhamente
maníaco refletido no espelho do banheiro. Por um momento teve a sensação de que
seus olhos podiam ter realmente visto dois seres sobrenaturais, quem sabe, dois
deuses do submundo. Pelo que ele sabia, podia ser até mesmo duas faces
distintas da mesma criatura.
O homem de preto continuava falando
como se seu tempo fosse realmente muito curto e ele já estivesse atrasado em
transmitir toda a informação que tinha.
_ Porém, dessa forma você pode
perdê-lo. Perder um dom poderoso como esse é abrir mão da maior dádiva que um
homem pode ter. É abrir mão de poder.
Como ele sabia sobre seu segredo?
_Pensou Ângelo.
Ele testou a voz para ver se ela ia
funcionar e pigarreou para desobstruir a garganta.
_ Quem é você afinal?_ perguntou
Ângelo_ Como entrou aqui? E como sabe sobre meu segredo?
Os olhos do outro brilharam quando ele
ouviu as perguntas. Podiam chegar a um acordo, afinal.
_Antes_ disse erguendo o dedo mais uma
vez como se estivesse pedindo a atenção total de Ângelo para o que seria dito
em seguida_ Por outro lado você pode escolher desenvolver seu dom e nisso eu
posso ajudá-lo. Imagine doutrinar seus sentidos de modo que você não só saiba
como receber suas visões, sentimentos e sensações, mas também saiba controlar
tudo isso, tirar o máximo proveito; escolher de quem você deseja saber toda e
qualquer informação. Não seria divino?
_ Divino?_ Ângelo repetiu a palavra em
tom de dúvida.
_ Pessoas comuns não têm essa
possibilidade; se entender seu dom poderá descobrir tantos segredos sobre o
mundo que o cerca e as pessoas que nele vivem que, salvamentos como o da menina
no parque serão coisa simples para você. Poderá salvar multidões ao invés de se
limitar a resgatar uma pessoa por vez, eventualmente.
A boca ainda estava seca e a sede ainda
pedia para ser saciada.
O outro ainda falava:
_Já pensou nisso? Ângelo. Acredite em
mim quando digo que você tem o potencial para evoluir mais do que a mente
humana com suas pseudociências podem sequer imaginar. Você poderá ser um deus
entre os insetos se assim desejar e eu estou oferecendo o caminho para que isso
aconteça. Entende o que estou falando a você?_ O tom de voz do outro era quase
de uma suplica religiosa. Ele disse_ Tudo isso eu posso te dar.
Ouvindo e entendendo, mas ignorando
grande parte do que foi dito Ângelo perguntou:
_ Onde está Diana?
Com certa impaciência transparecendo na
face o outro finalmente respondeu de forma clara:
_ Em breve você vai vê-la novamente,
ela está dormindo no quarto, você não a viu quando levantou?
Lembrou a da cama vazia ao seu lado.
Ele tentou se mover, mas o corpo ainda
não obedecia.
_ Por que estou preso aqui?
_ Entenda, não posso sair daqui hoje
sem uma posição sua meu jovem e só o libertarei quando obtiver tal resposta.
Ângelo ponderou:
_ Quem é você?_ perguntou novamente._
as coisas na cozinha não pareciam às mesmas de quando ele entrou na casa com a
namorada, e naquele momento ele percebia que a luz brilhava de forma diferente
do habitual, quase como uma luz falsa. Jamais saberia explicar aquilo.
Ignorando a última pergunta de Ângelo o
outro recomeçou.
_ Pense bem rapaz, imagine ter em suas
mãos o poder para fazer tudo da forma como bem entender, dobrar o mundo segundo
sua vontade e a realidade de acordo com seus pensamentos. Seria ou não seria
ótimo? Pense!
_Por que motivo eu ia querer uma coisa
dessas?_ a idéia era tão estapafúrdia que talvez só a tivesse imaginado em seus
sonhos mais estranhos e delirantes. Mas a verdade era que aquilo jamais tinha
passado por sua mente. Para Ângelo, sua capacidade de descobrir coisas ocultas
devia ser um distúrbio qualquer; quem poderia saber quanto poder está encerrado
na mente humana? E como só ocorria poucas vezes passando por longos períodos de
hibernação como o outro mesmo tinha dito; ele não se preocupava tanto com
aquilo até que aconteceu no parque e na batida da estrada naquela mesma noite.
A resposta foi automática como se já
soubesse o conteúdo da pergunta.
_ Você poderia salvar muitas mais
pessoas. Da forma como está, você é limitado por suas redomas morais, medos,
dúvidas, crenças e incertezas. Mas permita-me mostrar o caminho, abrir as
portas e remodelar você de um simples homem com potencial, para um deus urbano.
As palavras “salvar pessoas” ficaram
ecoando na mente dele com uma velocidade alucinante. Salvar pessoas era como
uma vocação intrínseca esperando para se manifestar, embora ele não tivesse
total conhecimento disso.
_ Sabe por que você se sente tão
incomodado com o fato de fazer coisas que os outros não fazem?_ continuou o
estranho_ É porque no fundo de seu ser você sabe que deveria fazer mais, ser
mais, ter mais. Então seja, faça e tenha! Essa é a hora e eu sou seu passaporte
para a glória definitiva. Todos os reinos da terra eu te darei se me pedires.
_ Você está me pedindo para ser um
deus? É isso?_ Ângelo pronunciou a frase com o máximo de cuidado que pôde,
porque soava desproporcionalmente arrogante, megalomaníaca. Na cabeça dele
nenhum homem poderia sequer imaginar uma loucura como essa. Querer para si as
prerrogativas de uma divindade. Que loucura!
Ângelo desviou o olhar por um segundo e
vislumbrou por cima do ombro daquele com quem falava, ao fundo. Bem no limiar
entre a sala e a cozinha, havia algo grande, algo como um vulto sombrio ou
translúcido se esgueirando sorrateiramente como se estivesse bisbilhotando a
conversa, mas ao mesmo tempo com medo de passar para o lado da luz. O rapaz
piscou rapidamente e, fosse aquilo o que fosse, não estava mais lá no momento
seguinte.
_ Então me diga por que e para que você
tem esse maravilhoso dom?_ A resposta do estranho foi outra pergunta.
Ângelo não tinha uma contra-resposta
para contestar ou sequer tinha qualquer outro argumento. Emudeceu.
O tom da voz do outro ficou grave e
urgente.
_ Existe um grande mal se aproximando
da sua vida, Ângelo, e se ele não conseguir seduzir você, então, vai levá-lo à
força e em seguida atacar todos em seu redor. Imagine; Diana, Ingrid e suas
respectivas famílias. Todos vão ser atingidos.
_ Mentira!_ Disse indignado. Afinal
aquilo não tinha o menor cabimento.
O estranho avançou mais um passo na
direção de Ângelo.
_A única forma de passar por isso com
poucos danos violentos será se você aceitar a natureza de seu dom e abraçar sua
vocação; fogo se combate com fogo, e trevas com trevas. Se sua moralidade o
detiver agora, se seu senso de bem e mal o impedir de aceitar meu convite
certamente você sofrerá desnecessariamente assim como muitos em seu redor,
tanto conhecidos quanto desconhecidos. Mas ainda há tempo.
Ângelo lembrou do sonho repetido que
sempre tivera com a mulher desconhecida gritando em agonia extrema. Seu coração
apertou; podia ser Diana, podia ser qualquer pessoa que conhecia, ou mesmo que
não fosse; jamais queria presenciar aquela cena onírica terrível na vida real.
Seu maior medo era ter o poder para salvar uma pessoa e mesmo assim não ser
capaz de fazê-lo e no fundo ele temia que aquilo um dia ainda pudesse
acontecer.
_ Que mal?_ perguntou com uma ponta de
aceitação nascendo em seu interior._ Lembrou-se das pessoas que o reconheceram
no shopping e da prima de Ingrid; Karen, o pai e a mãe dela.
_O Caos, Ângelo; o Caos.
Antes que Ângelo pudesse tecer qualquer
comentário a respeito o outro continuou falando. Seu tempo estava quase no fim.
_Você está sendo procurado por uma
pessoa e ela já está bem próxima de lhe encontrar. Também por isso estou aqui.
_ Pessoa? Que pessoa?_ finalmente foi
mais rápido do que o outro para conseguir falar.
A resposta foi soturna:
_Uma sombra. Um assassino.
_Sombra?!
_ A mando dessa entidade; o Caos. O
próprio assassino nem sabe ao certo a que propósito esta servindo, ele pensa
que foi solto única e exclusivamente para matar uma mulher.
_ E o que eu tenho com isso?_ Toda
aquela conversa estava muito fora dos padrões, Ângelo sentia-se como se uma
brecha espaço-temporal tivesse surgido enquanto ele dormia e o houvesse puxado
para outra realidade muito mais estranha. Levando em conta as coisas fora do
comum que estavam acontecendo com ele nas últimas horas não seria de se
admirar.
Ele não entendia que tipo de ligação
poderia ter com o tal assassino ou com a tal entidade. Considerando que tudo
aquilo fosse real.
_ O dom que você tem, enquanto estiver
ativo, vai atrair o assassino para sua vida, é apenas uma questão de tempo até
que ele encontre você, todas as coisas estão se arranjando para que isso ocorra.
Sua opção única é torcer para que seu dom volte a dormir e passe o maior tempo
possível assim. Do contrário será uma presa fácil. É por isso que estou aqui
lhe oferecendo essa oportunidade; torne-se como um de nós, una-se com a nossa
legião. Porque no fundo você sabe que isso vai acontecer de uma forma ou de
outra.
_Não compreendo uma só palavra do que
você diz.
O estranho avançou mais um passo e
finalmente ficou bem próximo, frente a frente, com Ângelo que tentava desviar o
olhar, mas não conseguia; algo nos olhos do estranho era terrivelmente
familiar. Ângelo sentia como se estivesse face a face consigo mesmo. Era uma
sensação por demais insólita.
_ Sou sua melhor chance._ disse o
outro_ Para salvar Diana, Ingrid e a família; e até mesmo a sua família. Eu sou
o caminho para deter esse mal; torne-se o mal. Se você aprender a desenvolver e
controlar seu dom, vai poder escondê-lo tanto do Caos quanto de seus
assassinos, se assim você quiser, e com um pouco de sorte sua vida vai
permanecer tão comum quanto está agora, porém você vai ter muito mais recursos
para fazer o que bem entender ou não fazer nada se for esse o seu desejo.
Ângelo pensou nos pais e em Miguel, seu
irmão mais novo. As faces de todos eles atravessaram seus pensamentos como
raios vindos de alguma nuvem carregada dentro de sua mente.
_ Isso é loucura! Loucura!_ precisou
repetir a palavra para conseguir crer nela.
O estranho começou a recuar. Um passo.
_ Loucura é você não admitir que é um
ser especial. Saiba disso: Seu dom não é mental como você pensa, ele é muito
mais profundo, muito mais primordial e poderoso do que você pode imaginar. Por
esse motivo, essa essência caótica fez contato com você em um nível
subconsciente, é isso o que ela faz; procura pessoas como você e as “arrebata”
para serem seus escravos. A verdade é que o Caos é a origem e a finalidade do
seu dom.
O estranho fez um sinal com os dedos
das mãos para representar as aspas quando pronunciou a palavra, arrebata. Em
seguida recuou mais um passo.
_ Isso só pode ser um sonho_ disse
Ângelo.
_ E é._ Afirmou o outro. Recuou
novamente e agora estava no ponto exato onde tinha iniciado toda aquela
conversa; no limiar entre a cozinha iluminada com a luz falsa e a sala
completamente às escuras._ Preciso de sua resposta rapaz. Vai se unir a nós por
vontade própria ou será devorado?
Ângelo logo percebeu que já podia se
mover novamente; seu corpo não estava mais sob a paralisia forçada que o
manteve preso nos minutos anteriores.
_ Sua bela namorada vem vindo aí.
_ O quê?!
_ Preciso da resposta, agora.
Tentando não se confundir entre
perguntas e respostas em sua cabeça ele respondeu da única forma que julgava
ser correta, fosse aquilo um sonho ou não.
_ A resposta é não.
_ Pense bem.
_ Eu disse não!
O estranho ficou visivelmente
insatisfeito, mas deixou escapar um sorriso matreiro.
_ Imaginei que você diria isso, mas eu
tinha de tentar. Nosso primeiro contato foi mais amigável do que eu supunha
inicialmente. Porém, os próximos não serão assim.
_Seja lá quem você for; é maluco.
O outro recuou mais um passo e as
sombras na sala pareceram o abraçar, fazendo com que quase não pudesse ser
visto. O jovem teve a nítida sensação de que vários olhos ávidos o observavam
das sombras na sala, mas não podia ver nada que comprovasse isso.
_ Espero que possamos nos encontrar o
mais breve possível._ O estranho disse das sombras.
Ângelo ia contestar falando alguma
coisa, mas acordou.
Percebeu que tudo aquilo não passava de
um sonho surreal, ou talvez não. Levantou da cama e correu para o andar de
baixo, mas antes praticamente refez seus passou assim como no sonho. Estava
muito confuso.
***
Diana acordou e logo percebeu que o
namorado não estava deitado ao seu lado; a luz do banheiro permanecia acesa e
as portas do banheiro e do quarto estavam abertas. Ela esfregou os olhos e se
levantou o mais rápido que pôde; foi ao banheiro e constatou que Ângelo não
estava lá. Apagou a luz e acendeu a do quarto, saiu pela porta, passou pelo
corredor e desceu os degraus da escada com uma curiosidade crescente se
desenvolvendo em seu interior. A cozinha estava acesa.
Logo que chegou à cozinha o viu parado
bem no meio do cômodo; imóvel e concentrado como se estivesse querendo escutar
algo subliminar no próprio ar.
_ O que está fazendo aqui amor, são cinco
horas da manhã._ Diana ainda mantinha o semblante sonolento.
Ele não respondeu.
_ Ângelo!
Acordando do que parecia ser um transe
passageiro, o namorado finalmente deu sinal de que estava ouvindo.
_ O quê foi?!
_ O que você está fazendo aí parado?
Finalmente ele se moveu e foi até a
geladeira, abriu a porta e pareceu observar tudo o que tinha lá dentro
cuidadosamente, a geladeira estava repleta. Ele pegou uma das duas garrafas
d’água e fechou a porta.
_Vim beber água. _mentiu.
Ela relaxou um pouco mais.
_ Ficou sem sono foi?_ o tom era de
brincadeira.
Ele pegou um copo e colocou água
vagarosamente, como se estivesse ponderando alguma coisa para falar. Disse:
_ Tive um sonho muito estranho.
A tensão reapareceu. Diana caminhou até
ele, deslizou a mão sobre o ombro do namorado fazendo um afago carinhoso e
passando por detrás dele pegou um copo também.
_ Um pesadelo?
_Não; um sonho estranho.
_Estranho como?_ ela pegou a garrafa de
vidro que ele tinha colocado sobre a mesa e derramou um pouco de água para si.
Ângelo ainda bebia quando ela fez a
pergunta e logo que engoliu a última gota tratou de procurar acalmá-la. Depois
do episódio da batida e do salvamento na estrada ele sabia que Diana estava
trabalhando com um nível incomum de preocupação e não queria que ela se
estressasse mais do que o que já estava. Teria que mentir mais.
Ele contou todo o sonho, mas teve o
trabalho de omitir a parte da conversa que teve com o estranho; disse apenas
que, no sonho, tinha se levantado, procurado por ela e não havia encontrado;
com isso, saiu pela casa procurando a partir do banheiro, escritório, sala e
foi parar na cozinha onde a chaleira estava no fogo e a luz estava acesa.
Então, logo que despertou sentiu sede e foi beber água.
_Só isso?_ perguntou a namorada ainda
em dúvida.
_ É só o que me lembro._ sentiu-se
péssimo por mentir para Diana, mas não tinha certeza absoluta de que seu
encontro com o estranho tinha sido somente um sonho. Tudo parecia tão real que
ele resolveu não revelar, por enquanto, até pensar bem a respeito e decidir o
que fazer. Obviamente mesmo que fosse verdade ele jamais aceitaria uma proposta
tão perniciosa quanto aquela.
Por hora ele teria mais um segredo para
guardar.
_Não me parece um sonho tão estranho._
ela bebeu um gole da água logo que terminou de falar.
_ Sei. Mas é que foi um sonho bastante
real. E quando não achei você deitada ao meu lado fiquei confuso.
_ Você só está cansado, vamos deitar._
ela abriu novamente a geladeira e guardou a garrafa.
Ângelo não estava mais tão cansado
quanto antes e o sonho ainda continuava recente na mente dele, tinha sido muito
vívido e cada uma das palavras do estranho permaneciam se repetindo
ininterruptas vezes.
Percebendo que o namorado estava meio
absorto, Diana disse quando já estava saindo da cozinha:
_Seja o que for que você está
escondendo aí, estou aqui para conversar se você quiser.
Ele não conseguia enganá-la, mas não ia
contar nada, não àquela hora. Talvez quando o sol surgisse.
Diana saiu da cozinha na frente
caminhando lentamente e subiu os degraus de volta ao andar superior para tentar
aproveitar o restante da madrugada que já estava quase no fim. Em pouco tempo a
claridade do novo dia já poderia ser vista pelas janelas e em seguida a luz
dourada do sol também apareceria para banir o restante das sombras no mundo lá
fora.
Ângelo ficou parado durante mais alguns
minutos no mesmo lugar em que sonhou que estava, ficou olhando para a passagem
da cozinha para a sala de onde o outro havia aparecido e conversado com ele.
Fez aquilo como se estivesse tentando criar uma reconstituição do sonho. Uma
reconstituição que lhe revelasse algo que ele não percebeu.
Ficou olhando para a sala escura e teve
a sensação de que ela estava pouco mais clara do que antes, provavelmente a
claridade do dia estivesse começando a se insinuar fora da casa, não tinha
certeza. Lembrou-se do grande vulto translúcido que vira brevemente se
escondendo por detrás do estranho sem querer enfrentar a luz falsa do sonho. Só
agora estava entendendo o motivo de achar que a luz estava brilhando de modo
diferente; era um efeito provocado pelo sonho, algo que mostrava que tudo
aquilo não era de todo real.
Finalmente ele desligou a luz da
cozinha e saiu, foi até a sala atravessou o cômodo e foi até a porta,
experimentou a maçaneta. Trancada como as demais. Voltou subindo pela escada em
direção ao quarto com as mesmas dúvidas marretando os pensamentos.
Será que ele tinha criado aquele sonho?
Será que tinha inventado toda aquela história sobre seu dom? Tudo o que foi
dito era absurdo por demais para ser levado totalmente em consideração.
Aquele foi o primeiro momento em que
Ângelo teve a nítida percepção de que estava com a sua sanidade em perigo.
Subiu e entrou no quarto onde dessa vez
Diana estava deitada na cama e já parecia estar dormindo, ela dormia virada
para o outro lado. Ângelo procurou fazer o mínimo de barulho possível ao se
deitar. Não ia mais conseguir dormir e ficaria ali deitado esperando que o dia
clareasse totalmente para decidir o que ia fazer.
(Ir para capítulo 9)
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