Quando Ângelo chegou em casa pela
manhã, ainda não tinha esquecido completamente o sonho estranho que tivera na
casa de Diana, não conseguiu dormir mais a partir daquilo e estava um pouco
cansado. Havia alguma coisa diferente martelando em sua cabeça, uma sensação
pesada como se ao redor dele houvesse uma grande e espessa nuvem de fumaça.
Guardou o carro no pátio da garagem e
percebeu que o veículo do seu pai, um Honda Civic 2003 ouro, não estava lá, ele
devia ter saído; como não trabalhava nos dias de sábado costumava sempre sair
com a esposa logo pela manhã após o café para fazer compras no supermercado.
Certamente eles tinham seguido a rotina também naquela manhã.
O carro de Miguel, seu irmão, esse sim,
um Corsa hatch 2003, azul metálico, estava lá em sua vaga especifica encostado
junto ao canto mais longe do muro sob a proteção da laje sobre a qual fica o
primeiro piso do apartamento.
Ângelo passou pelo carro do irmão
suficientemente perto para ver que necessitava de uma boa lavagem, uma película
considerável de poeira estava formada sobre a lataria do veículo.
Caminhando em direção a subida da
escada que levava ao andar de cima, ele foi surpreendido com o toque de seu
telefone. Tinha colocado toques personalizados que identificavam cada uma das
pessoas que ligavam para ele, aquele que estava chamando era a música “Bitter
sweet symphony” composta por Mick Jagger e Keith Richards e interpretada pela
banda de rock britânica “The Verve”. Ele tinha escolhido e colocado aquela
música para tocar sempre que Heloi ou Patrícia telefonassem. Gostava
muito do som da música que era uma de suas favorita; a tinha ouvido pela
primeira vez há muito tempo atrás quando ainda era um adolescente numa sessão
de cinema onde assistiu ao filme Segundas Intenções, à época ele era apaixonado
pela atriz americana Sarah Michelle Gellar que ficou muito famosa com os filmes
e a série de TV “Buffy a caça vampiros”. O fato era que a música tinha se
colado à mente de Ângelo e ele a mantinha em sua lista de mais ouvidas
constantemente.
Tinha uma música específica para cada
pessoa mais íntima de sua vida; para Diana colocara a música Boa Sorte – Good
Luck; interpretada por Vanessa da Mata e com a participação do cantor americano
Bem Harper; Diana sempre gostou muito de MPB e nos últimos tempos tinha
dedicado muitos momentos para ouvir essa e outras músicas de Vanessa da Mata.
Para sua mãe, seu pai e para o toque de Miguel colocou a música “Celestial” da
Banda norte americana P.O.D.
O telefone continuava tocando e ele
finalmente atendeu:
_ Alô _ disse e bocejou em seguida; não
foi intencional, mas a falta de sono na madrugada estava começando a cobrar seu
preço.
_ Oi, Ângelo, é a Patrícia; eu estava
pensando se você podia dar um pulo aqui mais tarde, Helói comprou um presente
para você e Ingrid quer lhe entregar o quanto antes. Sabe como ela é.
_Um presente? _estava realmente
surpreso_ Mais não é meu aniversário nem nada desse tipo.
_ Eu sei, mas você sabe que somos
eternamente gratos a você por tudo que nos fez, além do mais é apenas uma
lembrança, nada muito sério.
Ele procurou pensar rápido; se
estivesse em condições um pouco melhores certamente tomaria apenas um banho em
casa, trocaria de roupas e ia para lá, mas não sem antes passar em alguma loja
e comprar um presente também para a pequena Ingrid, algo como uma boneca ou um
daqueles relógios infantis que são vendidos acompanhados de uma bolsinha; mas
como estava terrivelmente abatido por não ter dormido direito e com a cabeça
doendo de tanto pensar naquele sonho, teve uma idéia.
_ Escute Patrícia, Estou um pouco
enrolado agora, mas vou pedir a Diana para dar um pulo aí e logo que eu puder
apareço. Tudo bem
_Está ótimo então._ Disse patrícia do
outro lado da linha.
_Não se preocupe, assim que eu for levo
um presentinho para Ingrid também.
_ Ora, Mas não é preciso!
_ É claro que é.
Patrícia sorriu e disse:
_ Então vamos esperar por Diana.
Abraço. _ em seguida desligou.
Ângelo recolocou o seu aparelho no
bolso e finalmente subiu.
Ele morava num apartamento, mas não era
um prédio grande, e sim um construído na década de oitenta, e reformado no início
do ano dois mil; era um apartamento de cinco andares em uma rua que mantinha o
clima bucólico muito apreciado por todos os moradores locais. Embora no centro
de Nova Iguaçu e com a expansão imobiliária a todo vapor por todas as partes
nas redondezas, aquele trecho permanecia como sempre fora; havia uma
brincadeira entre os moradores, eles apostavam para saber quando as grandes
firmas de construção começariam a tentar aliciar os antigos donos de imóveis da
área a fim de comprar suas casas para construir grandes condomínios. A
especulação estava correndo solta.
Os pais de Ângelo moravam na região há
trinta anos; haviam se mudado para lá logo que o primeiro filho nasceu,
precisavam de um lugar com mais espaço e o apartamento caiu como uma luva;
ficaram tão satisfeitos que jamais pensaram em se mudar novamente.
Ao abrir a porta ele encontrou o irmão
Miguel deitado no sofá da sala com seu café da manhã sobre a mesa de centro de
madeira e tampo de vidro; o irmão certamente tinha acabado de acordar e
enquanto degustava seu copo de café com leite e pão com manteiga e queijo,
aproveitava para ver um programa sobre esportes na TV por cabo.
Miguel trabalhava num banco privado
durante a semana, de segunda até sexta, das dez as cinco, às vezes seis. E
todas as noites ia para a faculdade. Estava cursando o quinto período de
Ciências Contábeis na Estácio de Sá, Campus de Nova Iguaçu. Geralmente ele
tinha o sábado de manhã para descansar e não fazer absolutamente nada a não ser
ver televisão, e navegar na internet, mas à tarde sempre se encontrava com
Isabela, sua namorada, passavam as tardes juntos fazendo alguma coisa,
costumavam passear e conversar, uma semana na casa dela e outra na casa dele.
Nos domingos pela manhã Miguel
costumava ir à Igreja, fazia cerca de três anos que ele havia passado a
frequentar uma denominação evangélica; ele gostava, portanto todas as outras
pessoas da família também gostavam, Ângelo não costumava acompanhar o irmão,
mas achava aquilo muito bom para ele. Os pais também, mesmo de formação
católica, não se opuseram diante da escolha do filho, pelo contrário, deram
força, sobretudo quando ele comunicou que também faria parte de um grupo
voluntário sempre que possível.
_ Chegando agora?_ disse Miguel
desviando rapidamente os olhos da tela.
As chaves tilintavam enquanto Ângelo
fechava a porta depois de entrar. Ele respondeu com outra pergunta:
_ Onde está o pessoal?
Depois de uma mordida no sanduíche de
queijo com manteiga Miguel respondeu:
_ Foram ao mercado; acabaram de sair._
seus pais eram realmente muito previsíveis.
_ Beleza. Tá assistindo o quê?
O irmão se endireitou no sofá.
_ Um panorama da Liga dos Campeões da
Europa; você sabia que existe um time grego chamado Aris Tessalônica e que ele
está disputando esse ano.
Ângelo gostava de futebol como a
maioria dos homens, mas Miguel era um catedrático no assunto, sabia todo tipo
de estatísticas dos times de vários campeonatos e não só do brasileiro, mas
também do espanhol, italiano, inglês, francês, alemão e até mesmo do argentino;
se não trabalhasse no banco poderia facilmente ocupar uma cadeira de comentarista
em qualquer programa de jornalismo esportivo. Desempenharia a função com
extrema facilidade.
Ângelo bateu levemente na coxa do irmão
para que ele desse passagem e suspirou de cansaço.
_ Você parece cansado._ disse Miguel.
_ Você não faz idéia do quanto.
_ Passou a noite com Diana.
_ O dia ontem foi cansativo e não
consegui dormir à noite._ Não mencionou nada sobre o acidente na estrada e
tampouco sobre o sonho, afinal, nada daquilo importava.
O cansaço sobre os ombros de Ângelo
parecia ficar mais denso, mais pesado à medida que ele caminhava; a cada passo
parecia estar recebendo sobre suas costas uma quantidade um pouco maior de
peso, o que o estava começando a curvar para frente. Nunca tinha sentido isso
em toda a vida, ao menos não se lembrava.
Miguel retirou as pernas que estavam no
caminho e o irmão mais velho passou por ele. _Vou tomar um banho rápido e
tentar dormir um pouco; quando o pessoal chegar diga que estou no quarto, por
favor.
_ Certo.
Miguel voltou para a sua posição de
observador profissional de programas esportivos, se deitando parcialmente no
sofá e continuou saboreando o café da manhã do mesmo jeito que estava quando o
irmão entrou na sala. Ângelo caminhou para o seu quarto.
Chegando lá, colocou as chaves do carro
sobre a cômoda logo na entrada ao lado da porta. O quarto estava com as janelas
e cortinas abertas, certamente a mãe dele tinha feito aquilo, ela gostava de
ambientes bem arejados e ele também, mas puxou a cortina para quebrar um pouco
da claridade que estava aguçando sua dor de cabeça. Não se lembrava de já ter
se sentido tão à vontade com a escuridão do quarto como naquele dia.
Sentou na cama e ficou ali por um
minuto. Tirou os tênis, mas permaneceu de meias.
Ele dormia num quarto e Miguel em
outro, havia bastante privacidade para ambos, mas Ângelo estava planejando
passar para uma casa só sua dentro em breve, já tinha conversado com os pais e
tudo estava mais ou menos encaminhado, faltava poucos detalhes e talvez mais um
ano até que aquilo se concretizasse tinha falado também com Diana e se tudo
corresse bem morariam juntos muito em breve; ele pretendia comprar uma casa
para eles e a namorada tinha concordado. Mas enquanto não acontecia ele
mantinha em seu quarto tudo o que precisava para gerenciar sua vida.
Atualmente Ângelo não estava
trabalhando, mas foi uma decisão tomada por vontade própria; resolveu ficar um
ano parado para repensar a vida, cada passo que deveria dar à
frente. Antes disso ele tinha trabalhado durante oito anos, dez se
contasse os dois anos de estágio, no setor administrativo de uma firma
farmacêutica multinacional localizada no município de Belford Roxo. Ângelo
tinha se formado em Administração de empresas na mesma faculdade que o irmão
agora estudava; na época recebia um salário relativamente bom para suas
pretensões, trabalhava entre segunda e sexta, e cursara o idioma espanhol por
completo além de fazer um curso preparatório para concursos públicos na sua
área. Foi uma rotina puxada que durou um bom tempo, mas lhe rendeu frutos.
No pouco tempo vago que ele tinha em
meio àquela rotina, gostava de escrever alguns contos, era um vício muito
antigo; Ângelo se lembrava de ter escrito o primeiro conto por volta dos dez,
doze anos de idade, talvez antes; continuou fazendo aquilo durante toda a vida;
era uma das coisas que mais gostava de fazer e uma das quais mais o relaxavam,
juntamente com a música.
Depois de formado ele pediu demissão do
antigo emprego para se dedicar totalmente a preparação para participar de um
concurso público, participou de vários e não demorou muito até ser aprovado num
dos concursos de nível superior para trabalhar na prefeitura municipal de Nova
Iguaçu, era uma das melhores coisas que podiam acontecer e ele agora apenas
estava aguardando o chamado para finalmente assumir o cargo, tinha passado
pelas demais etapas que ocorreram no decorrer do ano. E passara esse tempo em
casa sem trabalhar de maneira convencional. Mas antes de tudo isso, outra coisa
extremamente incrível já tinha acontecido.
Quando ainda estava trabalhando na
empresa farmacêutica, juntou alguns de seus textos em uma coletânea e a
inscreveu em um concurso cultural literário; fez isso de uma maneira um tanto
quanto descompromissada, mas algo lhe dizia que podia conseguir beliscar algum
dos prêmios que não eram nada ruins. Três meses depois ele recebeu o contato da
organização do concurso cultural lhe informando que seu livro fora escolhido
como vencedor na categoria contos e crônicas e que o prêmio consistia em uma
quantia em dinheiro no valor de trinta mil reais além de ter o livro publicado
por uma editora parceira da organização do concurso.
Ângelo recebeu o depósito em sua conta
corrente, e foi à festa de entrega do prêmio que aconteceu numa grande livraria
no centro do Rio de Janeiro; foi lá também que ele viu Diana pela primeira vez;
ela fazia algumas capas dos livros daquela editora.
No fundo ele achava que sua capacidade
estranha e adormecida de saber de coisas antecipadamente o tinha favorecido de
algum modo no concurso, passou a pensar assim principalmente depois do episódio
no parque de diversões; ele não pretendia seguir como escritor, embora adorasse
escrever para desanuviar a mente. Obviamente o dinheiro foi muito bem vindo e
ajudou Ângelo a ficar, durante todo o ano em que permaneceu parado após pedir
despensa do emprego, de uma forma muito mais tranquila. Porém ele sempre
manteve uma leve sensação de que havia trapaceado de algum modo, mesmo não
sabendo se de fato fora sua capacidade estranha que o tinha levado à vitória ou
se apenas sua habilidade normal na escrita que realmente era muito boa.
Lembrou que devia ligar para a namorada.
Era melhor fazer isso antes do banho.
Discou os números e aguardou.
Quando Diana atendeu, ele explicou que
tinha recebido um telefonema de Patrícia e pediu que Diana fosse até a casa
dela para buscar o tal presente, informou que ela não precisava ter pressa para
sair e que ele ia tentar dormir um pouco, mas que mais tarde ia até a casa dela
novamente e podiam sair um pouco ou, se ela preferisse, podiam pedir uma pizza
com refrigerante e assistir a algum filme na TV por cabo. O programa da noite
ficaria para Diana decidir o que seria melhor; havia também outras opções que
ele não estava conseguindo considerar naquele momento.
_ Eu pego o presente e passo aí
depois._ disse Diana já no fim da conversa.
_ Obrigado, amor.
_Mas posso demorar um pouco porque tenho
de passar na casa dos meus pais pra fazer uma visitinha rápida; sabe como é.
Ficou acertado daquele jeito.
Depois do telefonema finalmente Ângelo
conseguiu tomar seu banho e caiu na cama, mas não sem antes fechar as janelas
do quarto e puxar as cortinas totalmente, intensificando a escuridão do quarto,
a claridade certamente incomodaria. Não demorou muito para a mente dele
simplesmente desligar; os fantasmas do sonho da madrugada passada, da face no
espelho e da criatura amorfa pairando na garagem da namorada desapareceram
momentaneamente.
Àquela altura um pouco de sono genuíno
seria revigorante. Mais não foi.
***
Os pais de Ângelo chegaram em casa
trazendo consigo as compras em sacolas feitas de material reciclado que
geralmente usavam para colocar os pacotes, vidros e todos os artigos que
compravam no supermercado. Luis Roberto, o pai, tinha cinquenta e oito anos,
mas não aparentava a idade que tinha. Embora possuísse os cabelos grisalhos,
não era calvo; ombros largos e um pouco acima do peso, o que lhe conferia uma
barriguinha proeminente, mas que ainda estava dentro da circunferência
aceitável segundo o seu médico.
Roberto lecionava há trinta e oito
anos, dos quais vinte e três dedicados ao ensino superior numa mesma
instituição particular; era sua vocação e não pretendia parar.
Ana Maria, a mãe, entrou comentando com
o marido algo sobre os preços estarem levemente mais elevados do que de
costume; estavam casados há trinta e dois anos. Ela tinha cinquenta anos, era
uma pessoa de extrema vitalidade, e partilhava segundo ela, da mesma vocação do
esposo. Nunca chegaram a saber se aquilo era bom ou ruim para eles; mas criam
que era ótimo.
Quando entraram em casa ela já tinha
mudado a conversa e estava falando sobre uma conhecida que tinham encontrado
nos corredores do supermercado.
_ Muito tempo mesmo que não nos vemos_
disse ela enquanto o marido fechava a porta depois de colocar as bolsas
ecológicas para dentro da sala.
Miguel não estava mais na sala vendo
televisão como quando eles tinham saído, foram para a cozinha e começaram a
retirar os produtos das sacolas e colocá-los sobre a mesa a fim de organizar
tudo e guardar.
Miguel entrou no cômodo.
_ Ângelo chegou ainda agora, tomou um
banho e foi dormir._ informou.
_Como assim?_ Roberto consultou o
relógio de pulso._ Dormir a essa hora? Em pleno sábado?
_Eu acho que ele não está se sentindo
bem. Creio que é dor de cabeça.
Roberto terminou de tirar parte das
compras das sacolas e informou que ia descer para comprar o jornal e jogar um
pouco de conversa fora com qualquer um que encontrasse; disse que voltava antes
do almoço.
Ana Maria foi até o quarto de Ângelo e
empurrou a porta devagar, não queria fazer barulho. O quarto estava escuro e o
som do ventilador ligado era o único som presente; ela entrou e ascendeu a luz.
O filho estava deitado e virado para a parede, parecia dormir tranquilamente.
Ana Maria não quis acordá-lo, ao menos não naquele momento.
Naquele exato instante um pensamento
esquisito atravessou a mente dela; um pressentimento comum às mães quando há
algo de ruim acontecendo ou para acontecer com os filhos.
***
Mônica caminhava apressadamente na rua
onde o irmão morava, não olhava para os lados, e mantinha a respiração
acelerada pelo esforço que estava fazendo para chegar o mais rápido possível.
Enquanto ainda estava no ônibus tentou ligar várias vezes para Leonardo, mas
não obteve resposta alguma. Ela tentou achar um meio termo entre as teorias que
estava formulando na cabeça de forma que não demonstrasse o grau de ansiedade
que estava sentindo em seu interior; Fausto podia de alguma forma ter roubado o
telefone de Leonardo e se fosse esse o caso ela não queria chegar na casa e,
encontrando o irmão, alarmá-lo desnecessariamente. Por outro lado ela não
conseguia conceber como Fausto podia ter feito aquilo de uma forma sutil;
sutileza não era o forte dele e de igual modo também não era o de Leonardo.
A mente dela quase podia ver os dois
brigando e recordou as ríspidas discussões que tiveram anteriormente antes da
ruptura da amizade entre ele e Ricardo. Embora fosse uma pessoa muito doce para
com os parentes mais chegados e os amigos mais íntimos, Leonardo mantinha um
tom de desprezo para com todas as inimizades que fazia, sempre fora assim desde
a época de criança. Às vezes ele podia chegar até mesmo à violência física e
era preciso muito pouco para que isso acontecesse em se tratando de pessoas que
ele não gostasse; tinha o pavio curto e este era o medo de Mônica. Fausto por
outro lado era uma incógnita, ela não conhecia o ex-amante tão bem quanto
conhecia o irmão, mas o pouco que tinha conseguido extrair dele pelo pouco
tempo que ficaram juntos foi suficiente para saber que existia uma maldade real
dentro dele. Fausto era o contrário de Ricardo, mas no começo pareceu não
querer transparecer, mesmo assim Mônica conseguiu perceber pela forma como ele
se portava quando estavam juntos; havia algo de primitivo nele. Por algumas
vezes Fausto se gabou de ter ajudado Ricardo com problemas incômodos que ele
não conseguira resolver. Fausto dizia que tinha eliminado esses problemas, mas
nunca falava exatamente do que se tratava. Depois de se separar dele, Mônica
chegou a pensar que se tratava de pessoas que ele teria agredido ou até mesmo
matado; mas não sabia nem quantas, nem como e nem onde. Ricardo tampouco falava
sobre isso, provavelmente nem tivesse percebido que Fausto assumira o controle
de seu corpo nessas ocasiões. De certa forma aquilo quase explicava as
alucinações e síndrome de perseguição que Ricardo tinha desenvolvido nos
últimos meses que ficaram juntos; talvez ele fosse capaz de ver o que Fausto
fazia com as pessoas, porém, mais como um sonho do que como realidade e podia
ficar imaginando que outros quereriam vingar-se e até matá-lo pelos atos
cometidos pelo seu outro “Eu”.
Mônica parou de caminhar a alguns
passos do muro da casa de Leonardo, as coisas estavam fazendo um bizarro
sentido, mas não podia ser aquilo, era loucura demais. Logo saberia se, de
fato, tinha motivos para ter medo ou se sua imaginação estava
descontroladamente fora do eixo.
Abriu o portão sem nem olhar se ele
estava trancado, pois sabia que sempre ficava aberto e encostado, em seguida
entrou no quintal da frente; tudo parecia estar normal; o automóvel Gol de
Leonardo estava na garagem. A porta estava aparentemente fechada assim como a
janela. Na caixa de correspondência ao lado da porta Mônica retirou os cinco
envelopes de contas, pretendia entregá-los ao irmão.
_ Leo!_ chamou.
Com os envelopes de cobrança na mão ela
tocou a campainha e em seguida bateu na porta com o nó dos dedos; aguardou um
pouco, mas o irmão, se estava em casa, não deu nenhum sinal.
_Léo, sou eu!_ chamou novamente.
Ela repetiu o ritual mais uma vez e
novamente não houve resposta alguma. Sacou o aparelho celular e tentou uma
ligação pela “centésima” vez, mas o resultado foi o mesmo.
Mônica deu a volta na casa pelo quintal
rumo à porta dos fundos; tentava se convencer de que o irmão não estava em
casa, mas a falta de comunicação com ele era o que mais a perturbava. Tinha que
conseguir encontrá-lo; lembrou de Fausto no telefone dizendo que tinha ido
fazer uma “visitinha social”.
Naquele momento ouviu a voz dele:
_Olá Mônica!_ disse o outro._
Finalmente encontrei você.
Fausto estava encostado à parede nos
fundos e segurava uma arma apontada para a mulher.
***
Quando viu a face de Mônica surgindo ao
chegar no quintal dos fundos onde ele já a aguardava, Fausto sentiu que tudo
daria certo. Um ou dois minutos antes, ele estava ali parado com a mochila nas
costas e ainda pensando no poder atrativo que o besouro anômalo tinha exercido
sobre ele, mas ouviu a voz dela chamar o irmão na porta da frente; sabia que
ela viria até os fundos do terreno para ver se poderia entrar pela outra porta.
Fausto estava com as chaves.
Logo que ouviu a voz de Mônica ele
sacou a arma e esperou, não demorou muito e ela estava diante dele com o
semblante mais surpreso que já vira em uma pessoa.
_Olá Mônica!
Ela tentou falar, mas engasgou tamanho
foi o espanto por vê-lo parado ali. Em seguida tentou se recompor e falou:
_Fausto!?_ Havia um misto de dúvida e
surpresa. E aquela arma apontada em sua direção a deixava ainda mais nervosa.
Ela se perguntava se o outro teria coragem de atirar.
_ Pensei que você fosse demorar um
pouco mais_ ele disse.
Mônica ficou um tempo imaginando o que
ia dizer, o silêncio foi constrangedor e embaraçoso. Finalmente ela perguntou:
_Onde está meu irmão?
Fausto não respondeu, ao invés disso
fez um pequeno comentário:
_ Pensei que você fosse vir acompanhada
por alguém.
_Onde está meu irmão, Fausto?_ repetiu
ela.
Ele continuava ignorando. Disse.
_Sabe; planejei muitas coisas para você
e eu, mas agora estou um pouco confuso, esperava que fosse diferente, como uma
grande reunião familiar. _avançou na direção dela, dois passos.
Mônica ia recuar, mas não quis
demonstrar medo. Péssima escolha.
_Como assim?! O que você quer dizer com
isso?_ ela ainda olhava para a arma que ele mantinha erguida à altura do
abdômen.
_ Sabe como é; você, eu e Ricardo. Mas
creio que isso não vai acontecer. _ele suspirou pesadamente._Ah! Se você
soubesse as coisas que estão acontecendo comigo. A quantidade de coisas que
descobri que posso fazer. Coisas fenomenais; coisas que nem mesmo compreendo
ainda.
Ela não entendeu e por isso só
conseguiu repetir a pergunta que fizera antes:
_ Fausto, cadê meu irmão?
Ele permanecia impassível. Novamente
não respondeu.
_ Você me impressionou vindo aqui
sozinha. Foi muita coragem mesmo. Mas também foi muita burrice
Antes que ela pudesse perguntar
novamente pelo irmão; Fausto finalmente disse:
_ Seu irmão não está aqui.
_ E para onde ele foi?_ Aquela pergunta
foi a mais ingênua que ela já fizera na vida.
E a resposta:
_Ele foi para um lugar melhor._ Fausto
deixou escapar um sorriso macabro quando pronunciou as palavras pausadamente,
como que se deliciando com cada uma das sílabas.
No primeiro momento Mônica não percebeu
o que o conjunto apresentado em sua frente somado com a declaração recém
proferia queria dizer. Ela levou alguns milésimos, com a mente trabalhando na
velocidade máxima, para fazer a ligação de Fausto, mais a arma de fogo, mais
casa vazia, igual a: Irmão morto. Não pôde acreditar.
_Você matou ele?_ Balbuciou com os
olhos se enchendo de lágrimas aprisionadas.
O sorriso de Fausto se tornou ainda
mais largo com a “brilhante dedução” da mulher.
_ Fiz um favor a todos vocês_ disse num
claro tom de zombaria._ Vamos ser sinceros; ninguém gostava do seu irmão. Nem
Ricardo, nem muito menos eu; e acho até que no fundo você também não o
suportava.
As lágrimas rolaram pela face dela, que
perdeu a cor, Mônica parecia um fantasma de si mesma; ficou pálida. Seus lábios
finos tremeram quando ela tentou falar algo. Não podia ser verdade que seu
irmão estivesse morto.
_Você matou ele._ ela repetiu como uma
criança._Por quê?
A felicidade no rosto de Fausto deu
lugar a uma expressão soturna, foi quase como ver uma mutação facial se
transfigurando diante de seu rosto. Por um momento Mônica teve sérias dúvidas
de se ainda era Fausto que estava ali ou se alguma outra personalidade ainda
mais perversa tinha brotado das profundezas daquela mente atormentada.
Ele respondeu:
_ Pra chamar sua atenção. E agora que
já a consegui é hora de pararmos com a brincadeira e partirmos para o que
realmente importa.
Mônica chorava, mas ainda parecia não
ter compreendido exatamente a gravidade do que tinha escutado da boca de
Fausto, tampouco entendia o perigo que sua vida estava correndo a partir
daquele momento. Ela olhava para Fausto, o corpo dele, e via Ricardo, afinal,
tinha convivido muito mais com a personalidade mais amável dele, dessa forma
sua mente se recusava a acreditar que ele pudesse ter feito tamanho mal
Com o irmão da mulher que dizia amar.
Mas uma olhada mais atenta poderia revelar que Ricardo não era mais uma carta
no baralho, talvez jamais voltasse à tona. Havia sombras dançando nos olhos de
Fausto revelando uma violência aprisionada e em ebulição pronta para destruir
sua prisão e escapar. A emoção e a confusão não permitiram que Mônica fizesse
essa analise.
Com a mão esquerda Fausto retirou do
bolso da jaqueta o pequeno bibelô em forma de querubim e mostrou a ela.
Continuou apontando a arma que segurava ainda mais firmemente com a mão
direita. Esperava que a mulher não fosse suficientemente burra para tentar
fugir, porque isso ia obrigá-lo a disparar contra ela, e ele o faria. Mas
preferia que Mônica não fosse ferida a bala durante as primeiras sessões de
tortura; um orifício causado pelo chumbo quente ia ser como uma torneira de
sangue e Fausto não conseguiria fazer a ela tudo o que tinha planejado; ele
queria causar mais dor do que jamais uma pessoa podia imaginar sofrer e um tiro
diminuiria drasticamente o tempo de resistência da mulher. Mas atiraria se
fosse preciso; sem dó nem piedade.
O bibelô era como um símbolo de uma
época que embora não fizesse muito tempo que terminou, ela guardava com muito
carinho na memória. Os primeiros meses de relacionamentos ocorreram como se
vivessem num paraíso. Mônica amava aquele pequeno anjinho.
_ Trouxe um presente para você._disse
Fausto mostrando a pequena peça.
O olhar magoado dela se acalentou
levemente quando viu o anjo, mas tudo não passava de uma tortura psicológica.
Fausto deixou o objeto cair
propositalmente; o anjinho infantil mergulhou de encontro ao chão e ao se
chocar com o solo se espatifou de uma forma grotesca virando um conjunto de
cacos que jamais poderiam ser recuperados.
Ela se assustou com aquilo mais do que
o normal.
_ É isso o que acontece com os anjos_
disse ele, continuando._ Eles caem. E o que sobra são só pedaços mortos; pó de
estrelas.
Aquilo não fez sentido algum para ela.
Ainda chorava e pensava em Patrícia, Heloi e Ingrid. O medo de não vê-los mais
estava ganhando volume dentro dela.
Fausto tinha falado mais coisas que ela
não compreendeu por não estar prestando atenção, mas ouviu muito bem o tilintar
das chaves quando ele as retirou do bolso. Eram as chaves da casa de Leonardo.
Ele lançou as chaves sobre Mônica e
recuou um passo.
_ Abra a porta devagar e entre_ ele
disse, fazendo um movimento com a arma apontando na direção da porta.
Mônica se abaixou para recuperar as
chaves porque não teve presença de espírito suficiente para recolhê-las
enquanto viajavam no ar. Em seguida, trêmula, colocou uma delas na fechadura
que parecia mais velha e enferrujada do que realmente era, girou. A porta se
abriu com um estalo revelando do outro lado uma cozinha que parecia não ser
visitada por nenhum ser humano há décadas. O ar dentro do cômodo estava
viciado, as coisas estavam parcialmente desarrumadas, mas não muito, apenas
alguns copos sujos na pia que continha também um prato e dois talheres; garfo e
faca.
No canto ao lado do fogão estavam
algumas latas vazias de cerveja. Provavelmente Leonardo as estivesse juntando
por algum motivo; ou para vender ou para dar a qualquer um dos catadores que
rotineiramente passavam pela rua procurando latinhas, garrafas pet e outros
itens de lixos recicláveis.
Havia um cheiro forte também, mas
Mônica não conseguia identificar o que podia ser.
Fausto entrou logo atrás dela com a
arma ainda apontada para as costas da mulher, fechou a porta, mas deixou as
chaves na fechadura.
As lágrimas não corriam mais pela face
dela enquanto averiguava todo o lugar.
_ Não parece muito bonito, não é?_
perguntou Fausto claramente zombando.
Mônica não respondeu.
_Anda!Vamos até a sala.
Mônica caminhou sem dizer palavra
alguma até chegar à sala onde as coisas também estavam parcialmente fora do
lugar; parecia que alguém tinha revirado a casa. A primeira coisa que chamou a
atenção dela foi que a televisão tinha um buraco de bala bem no centro. Quando
viu aquilo ela se voltou para Fausto que a observava curioso.
O olhar dela correu da televisão
quebrada para a arma na mão do outro e depois novamente para a televisão.
_ Foi aqui que aconteceu?_ perguntou
com a voz novamente embargada, mas lutando para manter o controle.
Fausto apontou com a arma para o sofá.
Mônica pode ver um pouco da mancha de sangue praticamente seco que escorria
para o chão. Ela chorou novamente; não foi capaz de conter.
Aquilo aquecia o coração de Fausto. E
sem que ele mesmo soubesse, também alimentava algo muito mais perverso que os
rodeava incógnito esperando a hora de se mostrar.
_ Por que está fazendo isso comigo?_
perguntou aos prantos.
_ Tenho muitos motivos, mas não espero
que alguém me entenda.
Fausto se aproximou dela novamente;
queria ver cada pequeno detalhe da expressão de dor que Mônica demonstrava; o
olhar choroso e atormentado, a face retorcida e transtornada pela dor que o
coração dela emanava pela perda de um ente querido. Aquilo era apenas uma
prévia do que ele ainda faria.
_ Por favor! Não fiz nada com você para
merecer isso!_ O choro aumentou.
A dor era como um alimento que Fausto
quase podia saborear; era como se seu corpo pudesse absorver aquilo, era uma
sensação boa e que ele pretendia aumentar por meio da tortura que ainda ia
submetê-la. Aquilo era só o começo.
Mônica se abaixou, não conseguia mais
se manter de pé, seu abdômen doía por causa dos soluços em meio a todo o choro;
a visão estava embaçada pelas lágrimas que brotavam descontroladas. O medo destruía
cada um dos pensamentos que ousavam aparecer na mente dela, exceto um; a
certeza de que não ia mais sair daquela casa com vida.
_ Levanta Mônica; é hora de começar.
Ela se virou para ele, mesmo abaixada e
com a visão parcialmente atrapalhada pelas lágrimas, sabia que aquela mutação
medonha tinha ocorrido novamente; o rosto de Fausto estava um pouco mais
sombrio do que antes. Era quase como se ele estivesse passando fisicamente por
uma mudança estranha. Mônica tentou se controlar, mas era tão difícil, limpou
os olhos molhados com as costas das mãos e focalizou o olhar penetrante do
outro a observando; não era o olhar de Ricardo, estava muito longe de ser; no
início Ricardo tinha um olhar amoroso e concentrado, mas com o tempo foi
ficando cada vez mais distante, mas o que ela via ali naquele momento era um
olhar pernicioso, corrupto, malévolo; era quase como se houvesse um outro ser
muito mais maldoso escondido dentro de Fausto, olhando por detrás e através dos
olhos dele como se o rosto não fosse mais do que uma máscara feita de pele e
ossos humanos. Por um momento os olhos de Fausto dançaram freneticamente nas
órbitas e aquilo foi tão pouco humano que assustou ainda mais a mulher.
_ Levanta logo!_ vociferou. A frase foi
acompanhada por um chute que acertou o braço dela.
Assustada mais do que já estava com
tudo aquilo, Mônica perdeu o equilíbrio e mesmo abaixada foi capaz de cair
sentindo a dor no braço; engatinhou como um animal de quatro patas até o sofá e
finalmente começou a se erguer.
Fausto finalmente baixou a arma e a
colocou presa ao cós da calça, cobrindo-a com a camisa; não precisava mais dela
para deixar clara a relação de autoridade que tinha sobre sua vítima; a mulher
estava mentalmente submissa pela fraqueza provocada por tudo o que tinha
ocorrido desde que chegou àquela casa. Ela descobriu que o irmão estava morto e
que ela era a próxima.
Quando Mônica se levantou do chão,
Fausto estava tão perto que seus corpos quase se encostaram. Ele a segurou tão
firmemente pelos braços que a dor penetrou nos ossos dos cotovelos
Ela ia deixar escapar um gemido de dor,
mas Fausto a beijou. Ela resistiu, mas a força dele era ainda maior do que ela
se lembrava, moveu a cabeça tentando fugir dele e tentou se debater.
Fausto a jogou sobre o sofá manchado
com o sangue de Leonardo e o solavanco foi tão grande que as costas de Mônica
doeram mesmo batendo contra a superfície acolchoada.
_ Vamos nos divertir bastante aqui
minha querida e não há ninguém que possa ajudá-la.
Ele avançou sobre ela; Mônica pensou
que o interesse dele fosse de possuí-la; lutaria o máximo que pudesse e não
cederia; não ia se entregar para aquele demônio. Embora Fausto tivesse o corpo
de Ricardo, não possuíam a mesma alma, tampouco o mesmo espírito.
Mônica já preparava suas pernas para
lutar contra o provável invasor, mas foi surpreendida com um soco tão forte no
queixo que ela ouviu o estalar do maxilar forçando-se contra a articulação da
boca. No mesmo momento ficou tonta viu luzes girando e apagou.
Fausto não queria violentá-la.
(Ir para capítulo 11)
Comentários
Postar um comentário