Pular para o conteúdo principal

Refugiada -- Capítulo 5 -- Érebus.




Mônica Soares Martins retirou uma garrafa d’água e fechou a porta da geladeira. Havia vários imãs agarrados do lado externo da porta, pequenas representações de frutas, animaizinhos, diminutas flores e até mesmo um calendário em tamanho muito reduzido. Caminhou pela cozinha até o balcão inox da pia, retirou um copo do escorredor de utensílios e preencheu com a água.
Patrícia Lopes Melli, prima de Mônica, permanecia de costas para ela enquanto conversavam; cortava alguns tomates em rodelas finas que colocaria na salada que acompanharia o jantar daquela noite, a faca, bem afiada, praticamente deslizava abrindo a tomate sobre uma tábua de carne, usava uma faca pequena e serrilhada com ponta muito fina. Gostavam muito de conversar desde que Mônica havia se hospedado na casa para passar alguns meses e, além do que, já costumavam conversar durante o dia no tempo que tinham juntas, geralmente a hora do café; gostava também, principalmente de conversar antes do jantar porque era um horário perfeito. Àquela hora Ingrid geralmente estava tomando banho, a menina passava muito tempo brincando na banheira e geralmente só deixava o banheiro quando a mãe ia chamar. Já o marido de Patrícia, Helói, que trabalhava no departamento pessoal de uma firma de Contact Center na Avenida Rio Branco, centro financeiro do Rio de Janeiro, ainda não tinha vindo do trabalho naquele horário e a casa ficava praticamente toda para as primas descansarem um pouco de seus dias de trabalho e conversarem o quanto quisessem.
Patrícia trabalhava como analista de crédito num banco privado no centro de Nova Iguaçu, portanto relativamente perto de casa, cerca de quinze minutos de carro entre a casa e a agência; trabalhava geralmente de dez da manhã às cinco da tarde, às vezes passava um pouco e geralmente chegava em casa por volta de sete horas porque ainda ia buscar a filha na casa do tio.
Todos os dias pela manhã, Lídia, esposa do irmão de Heloi, Eraldo, passava na casa de Patrícia para pegar Ingrid e levar à escola. Lídia trabalhava apenas em casa e tinha uma filha da mesma idade de Ingrid; Karen. As meninas eram como irmãs também, a exemplo da amizade que Patrícia e Mônica sempre nutriram entre si.
Ao sair da escola, Ingrid ficava praticamente todo o dia na casa da prima e do tio, até que a mãe ou o pai passassem lá depois do expediente para buscá-la.
Mônica bebeu a água gelada de um só gole e foi até o fogão onde uma panela com água estava no fogo; a água fervia e ela colocou uma porção de macarrão talharim cuidadosamente no líquido borbulhante.
_ Então_ disse Patrícia_ como estão às coisas com o tal cara do trabalho?
Desde que abandonou Ricardo, Mônica largou o emprego antigo também, trabalhava como vendedora numa grande e conceituada joalheria, ganhava, portanto, relativamente bem com a comissão das vendas de jóias, relógios e outros acessórios sofisticados, mas pediu demissão às pressas para evitar ser encontrada e passou alguns dias na casa do irmão; mas em seguida recebeu o convite para se hospedar na casa da prima. Adorou a idéia e aceitou imediatamente, primeiro porque Ricardo, embora conhecesse Patrícia, o marido e a filha; não sabia onde eles moravam e caso não aceitasse a separação, não poderia encontrá-la. E segundo porque o “ex-marido” sabia muito bem onde ficava localizada a casa de Leandro, portanto, lá podia achá-la e ficar importunando. Ela não queria mais nada com ele. Ricardo estava completamente louco e aquilo tinha ficado perigoso.
Pouco tempo depois de se mudar para a casa da prima ela conseguiu um novo emprego como vendedora numa grande loja de departamentos em Nilópolis. Não era o que ela queria para a sua vida, mas estava servindo para ajudar a esquecer o desastre de seu relacionamento. Pretendia muito em breve conseguir algo melhor e retomar a vida do ponto onde tinha parado; porém para isso ainda tinha de espantar alguns fantasmas de sua mente.
_ Não estão._ respondeu Mônica._ ainda não o conheço o suficiente para aceitar o convite dele para sairmos.
Patrícia sorriu como uma colegial.
_ Ele já te convidou para sair?
_ Sim várias vezes; ele não desiste, é daqueles que ficam o tempo todo cercando e olhando para mim.
_ E qual é o problema?_ Patrícia terminou de cortar os tomates e colocou-os numa travessa plástica onde havia também cebola cortada em rodelas, pimentão fatiado, folhas de alface lavadas formando um forro para o fundo da travessa e um pouco de cenoura e beterraba raladas e depositadas como pequenos montinhos, o que dava um colorido especial à salada.
_ O Problema é que estou fugindo de relacionamentos, ao menos por enquanto.
Mônica mexeu o macarrão dentro da panela usando uma grande colher de madeira.
_ Acho que você deve avançar, sabe, baixar a guarda um pouco; Ricardo já é passado e você é bonita, vai chamar a atenção dos homens todo o tempo. Isso é certo. Não estou dizendo que você deve sair com esse ou com qualquer um, mas para você começar a tentar reorganizar sua vida sentimental também.
A cozinha onde elas estavam era um cômodo relativamente amplo e arejado; possuía uma mesa retangular feita com inox tubular e tampo de mármore no centro do lugar com quatro cadeiras, uma em cada lado, fogão, freezer, geladeira e um armário; tudo estava perfeitamente distribuído pelo espaço formando um harmonioso círculo e permitindo uma boa circulação de ar. Quem não conhecesse a dona da casa poderia, ao ver a cozinha, chegar à conclusão de que ela fosse adepta do Feng Shui o que não era verdade, mas parecia, pela forma como fazia questão de harmonizar todos os móveis dos ambientes.
As paredes eram recobertas com pastilhas acrílicas de tom bege e isso combinava com as cores de quase todos os móveis e utensílios. Patrícia fazia questão de combinar as cores bege com bege ou com branco no caso do liquidificador, processador de alimentos, torradeira, espremedor de frutas, forno de microondas, panificadora e filtro de água.  Tanto a geladeira quanto o freezer eram beges também.
_ Não sei se já estou pronta, quer dizer, não é minha separação com Ricardo que está sendo um problema.
_ Então o que é?
Patrícia foi até a geladeira, abriu e pegou uma garrafa que estava acondicionada no primeiro espaço logo abaixo do congelador. Era vinho tinto. Desde que fizera uma viagem à Cidade do Porto, em Portugal, três anos antes, Juntamente com Heloi e Ingrid, tinha ficado apaixonada pela forma como nossos patrícios tratavam aquela bebida e mais apaixonada ainda pela própria bebida; passou a tomar quase todos os dias um copo de vinho tinto, mesmo que não fosse o verdadeiro vinho do Porto, mas ouvira falar que um pouco de vinho todos os dias ajudava na prevenção de algumas doenças por isso Patrícia passou a fazer aquilo quase como um ritual religioso, uma espécie de liturgia particular; geralmente tomava antes do jantar quando estava conversando. Uma boa conversa e um copo de vinho deixava tudo muito mais agradável. Era isso o que ela pensava.
_Foi muito estranho os últimos meses de relacionamento com Ricardo, sabe, ele estava muito diferente, ausente, descontrolado e às vezes insano em todos os sentidos.
_ Todos?!
_ Sim.
Enquanto procurava na gaveta do armário por um saca-rolha, Patrícia perguntou:
_ Até na cama?
Mônica pensou por um segundo, como se estivesse rememorando algum fato do passado. E respondeu:
_ Principalmente._ ela ficou em dúvida se contava sobre Fausto à prima, mas resolveu aguardar mais um pouco. Não tinha certeza de que a outra entendesse plenamente como Fausto se encaixava no relacionamento dela com Ricardo. No começo foi muito bom, mas depois se tornou desastroso.
Com uma cara de curiosidade Patrícia comentou:
_Você não costuma falar muito dos motivos de seu rompimento com ele. _ ela tentava retirar a rolha de cortiça da boca da garrafa.
O talharim estava quase no ponto, Mônica foi ao armário e em uma das gavetas inferiores retirou um escorredor de massas. Colocou-o na pia.
_ Eu sei; é que foi muito surreal e estou procurando me desligar completamente dele e de tudo o que aconteceu, sabe, tenho medo de que se eu ficar falando possa sonhar, sei lá, quero me manter totalmente afastada, de corpo e alma.
Patrícia e Mônica eram mais do que primas, desde pequenas eram confidentes e não tinham segredos uma para a outra, por isso Patrícia achou tão estranho o fato de Mônica não se abrir totalmente com ela; as causas do rompimento com o “ex-marido” deveriam ser, além de sérias, muito embaraçosas para Mônica continuar mantendo segredo quase seis meses depois; mas não fez pressão alguma, afinal, entendia que a prima tinha passado por maus momentos no relacionamento que culminaram com um rompimento brusco seguido de vários desentendimentos; além disso, sabia que mais algumas coisas que não tinham sido reveladas ainda viriam à tona no momento certo.
Quando Mônica foi morar com a prima estava praticamente em frangalhos, muito assustada e pouco comunicativa, o que era muito estranho para uma mulher que desde menina falava o tempo todo e com todo mundo. Felizmente o contato diário com a pequena Ingrid e com a família bem estruturada da prima foi o tratamento intensivo do qual estava precisando; em pouco tempo Mônica se recuperou quase totalmente dos traumas sofridos no relacionamento, Passou a sair novamente, tanto sozinha como com a família para onde quer que eles fossem, museus, teatros, fins de semana na Região dos lagos, Cabo Frio e Saquarema; ou na costa verde, Angra dos Reis e Ilha grande; mas sobretudo, ela adorava as festas e almoços de domingo feitos na casa em que moravam, onde reuniram-se além das duas primas, Heloi, Ingrid; Eraldo, Lídia, Karen e Ângelo, o anjo da guarda da criança, sempre que podia ele fazia questão de estar presente; nas últimas vezes levou até a namorada Diana, moça adorável.
Ângelo e a família tinham criado e nutriam um bonito laço de afeto mútuo que, segundo eles mesmos diziam, perduraria para sempre.
Como se não bastasse toda essa gente, às vezes Leonardo aparecia trazendo sua namorada do mês, sempre mulheres diferente; Patrícia achava que ou ele era muito dado às pequenas aventuras amorosas ou estava pagando mulheres para sair com ele. Hélio não gostava de Leonardo sempre levando mulheres diferentes para as festas e almoços de família. E Mônica ficava extremamente envergonhada com o comportamento fútil do irmão.
A rolha saiu da boca da garrafa com um ruído característico.
_ Quer vinho?_ perguntou patrícia.
_ Claro.
 A dona da casa derramou o líquido vermelho-escuro e aveludado, quase reluzente, no copo que a prima antes tinha bebido água e em seguida pegou um para si.
_Você precisa de uma pessoa como Ângelo._ continuou a prima deixando o assunto “relacionamento passado” para trás.
Mônica riu.
_ Ele é uma graça mesmo, mas tem namorada, se amam e formam um casal muito bonito.
Patrícia colocou vinho no seu próprio copo.
_ Não estou falando que você deve ficar com ele, mas com uma pessoa como ele. È um homem responsável, honesto, fiel, trabalhador, politizado, centrado e que deseja uma família de verdade. Uma pessoa e tanto, eu diria que está um pouco difícil encontrar um desses no mercado hoje em dia.
_ Você está falando isso porque ele salvou minha sobrinha.
Embora aquelas duas mulheres fossem primas e Mônica também fosse madrinha da menina, dizia a todos que Ingrid era sua sobrinha.
_ Isso também._ Arrematou Patrícia com um ar brincalhão no rosto e tomou um gole do vinho.
O macarrão estava no ponto; Mônica colocou o copo na mesa e desligou o fogo, em seguida tirou a panela e levou para a pia, onde derramou todo o conteúdo no escorredor. Colocou a panela de lado e abriu a torneira sobre o macarrão fumegante; a água rapidamente tratou de baixar consideravelmente a temperatura da massa, mas não por completo; Mônica desligou a torneira e ergueu um pouco o escorredor para que a água saísse pelos furinhos no fundo.
Enquanto isso a outra retirou mais uma travessa, sendo essa de vidro e colocou sobre a mesa, foi ao fogão e destampou uma panela que tinha colocado previamente lá, dentro estava o molho de tomate; o aroma delicioso inundou a cozinha. Levou a panela para a mesa e colocou ao lado da travessa vazia.
Ingrid apareceu correndo, vestida, mas enrolada na toalha de banho e com os cabelos pingando sobre a roupa, seus pés descalços estavam espalhando água por toda a casa.
Ao ver aquilo a mãe se assustou:
_ Filha! Não. Está molhando a casa toda!
Ingrid não ligou para a repreensão, tinha algo em mente.
_ Mãe depois de comer, podemos ligar para o Tio Ângelo?
_Pra quê?
_ Para dar o presente.
A mãe que tinha ido até a menina e estava enxugando ela com a toalha ainda enrolada no corpo se voltou para a prima e disse:
_ Cuida da mesa pra mim só um minuto que vou levar essa bagunceira aqui para arrumar a bagunça que ela certamente fez lá no banheiro.
As duas saíram da cozinha e sumiram pela sala ao lado.
Mônica ficou um tempo parada olhando para o lugar por onde as duas tinham saído; pensando em tudo o que Patrícia tinha dito até aquele momento. Ela tinha uma certa razão, estava mais do que na hora de prosseguir com a vida e deixar o passado recente de lado; já fazia quase sete meses. Quanto mais tempo ela ficasse guardando segredos, mais prejudicial seria; e já estava tão bem que queria realmente encontrar alguém que desejasse formar uma família sólida e tão bem estruturada quanto aquela em cuja casa ela estava hospedada.
Só uma coisa ainda a incomodava; Fausto. Como ela poderia explicar sobre ele se também não entendia completamente como tudo tinha acontecido? E pior, sabia que Fausto era muito mais possessivo e violento do que Ricardo. Mônica não tinha só fugido de seu “ex-marido”, mas também e principalmente de Fausto. Ficou em silêncio e continuou pensativa trabalhando no macarrão.
Alguns minutos depois Patrícia voltou sozinha.
_ Você não vai acreditar na bagunça que ela fez lá no banheiro; molhou tudo e tirou todas as coisas do lugar. Essa menina está ficando impossível.
Mônica disse:
_ O macarrão está pronto.
A travessa de massa estava colocada sobre a mesa e o talharim ostentava um belo e aparentemente apetitoso molho vermelho; Mônica tinha até colocado uma folhinha de alecrim sobre o prato para dar um toque especial.
_ Estive pensando no que você falou.
Patrícia pegou o copo de vinho que permanecia sobre a mesa e perguntou:
_ Sobre o quê?
_ Sobre dar continuidade à minha vida. Acho que você está coberta de razão, devo continuar minha vida sem o Ricardo e recomeçar. Encontrar alguém pra ser feliz.
_ É assim que se fala. _ A dona da casa bebeu mais um gole do vinho_ A comida está com uma cara ótima.
Ouviram o toque do aparelho telefônico na sala.
Ingrid voltou para a cozinha com o telefone sem fio na mão balançando de um lado para outro.
_ Papai no telefone._ Disse com firmeza.
Patrícia pegou o aparelho e a prima observou enquanto a conversa se desenrolada entrecortada por momentos de escuta e perguntas.
_ Alô... Porquê querido?...Fizemos macarronada... Tudo bem, não tem problema... Tchau; te amo.
Quando finalizou a conversa devolveu o telefone e pediu que a filha colocasse novamente na sala.
_ Leva pra mim amor?
_Levo.
Ingrid correu com o telefone na mão. Ainda estava descalça, e a mãe gritou:
_ Coloca uma sandália!
Patrícia voltou sua atenção para Mônica.
_ Era o Heloi; vai demorar para chegar em casa._ disse.
_ Por quê?
_ Parece que está tudo engarrafado lá do centro pra cá. Cada dia o trânsito piora um pouco.
Mônica deu de ombros.
_ E isso não é o pior; Ingrid está faz tempo dizendo que quer dar um presente para Ângelo, ela fez o pai prometer que ia comprar alguma coisa para dar com dedicatória e tudo. Então hoje Helio ainda vai passar no shopping, eu acho, e ver se encontra alguma coisa.
_ Que tipo de coisa?
_ Não sei ainda. Talvez um livro, ou uma caneta especial. Ângelo mantém uma coleção de canetas.
_Interessante.
Patrícia chamou a filha para jantar, já que Heloi não ia chegar a tempo, gostavam de jantar todos juntos sempre que era possível e mantinham isso como se fosse outra tradição religiosa da família. Ingrid apareceu rapidamente com as sandálias devidamente colocadas nos pés e sentou na cadeira da cabeceira da mesa. Mônica já tinha colocado também os pratos dispostos nos lugares tradicionais onde cada uma delas costumava sentar.
As duas beberam o restante do vinho que estava nos copos enquanto saboreavam uma excelente macarronada; já a menina comeu com o acompanhamento de um copo de suco de laranja, era o preferido dela.
Durante o jantar conversaram um pouco mais e foi uma refeição bastante descontraída como geralmente costumava ser; com muitos sorrisos de todas as três tanto das adultas quanto da menina.
Falaram um pouco mais sobre o trabalho de ambas e do projeto de Mônica em voltar ao trabalho no ramo de Joalherias onde recebia melhor do que no atual emprego. Ela tinha alguns contatos antigos, ex-colegas de trabalho que migraram de uma joalheria para outra, pretendia ligar para algumas delas e ver se podiam ajudar de alguma forma. Gostava muito de trabalhar com jóias.
Conversaram também sobre o dia de Ingrid na escola e depois na casa de Karen. A menina falou incansavelmente sobre tudo o que ela e as coleguinhas de classe tinham aprendido durante a aula, em seguida contou, com o maior entusiasmo do mundo, sobre as brincadeiras na hora do recreio. A mãe e a madrinha limitavam a rir e a concordar com tudo o que a menina dizia, mas não estavam fingindo interesse, pelo contrário, elas estavam profundamente interessadas em saber exatamente tudo o que tinha acontecido durante todo o dia de Ingrid.
Patrícia gostava de praticar essa interação com a filha quase todos os dias, exceto quando trazia muito trabalho para fazer em casa, mas mesmo nesses dias ela ainda fazia um esforço para ouvir a versão resumida de todas as atividades escolares da menina e tinha certeza de que aquilo era o suficiente para deixar claro que havia vontade da mãe em oferecer toda a ajuda que a filha por ventura precisasse.
Da mesma forma Mônica costumava dar vários conselhos de como a afilhada devia agir em determinados casos, mas nunca passava por cima da autoridade da mãe; em todo e qualquer assunto que Patrícia opinava e descrevia a forma de fazer ou agir, Mônica concordava com veemência, sempre acrescentando a frase: “Ouça sua mãe”. Era uma forma de solidificar o entendimento de que a menina devia manter sempre em mente que a mãe dela sabia exatamente como agir em qualquer situação.
Depois de falar que escrevera até a mão doer, que um menino fez muita bagunça e foi colocado de castigo, que as professoras brigaram com outro aluno de outra classe e que havia tirado a nota máxima no teste semanal; Ingrid mudou o foco do discurso e trocou o tema “escola” pelo tema “casa da Karen”. Falou que tinham almoçado arroz com carne e purê de batata seguido de uma deliciosa sobremesa de sorvete, disse que tomaram banho de piscina, fizeram lanche, brincaram com a bicicleta nova de Karen e viram alguns desenhos na TV a cabo. Como se isso não bastasse, ficaram o restante do tempo brincando de tirar fotos para colocar em seus álbuns virtuais.
Tanto Patrícia quanto Mônica fizeram objeções dizendo que tais fotos só seriam expostas na internet depois que fossem devidamente analisadas pelos pais e fosse visto que não representavam ameaça alguma nem para as próprias crianças nem para qualquer outra pessoa. Aquelas fotos infantis só seriam disponibilizadas na rede se fossem totalmente inofensivas sob todos os aspectos.
Pouco tempo atrás a diretora da escola havia reunido todos os pais para informar e pedir maior acompanhamento das atividades dos filhos em ambiente virtual, como forma de prevenir qualquer tipo de comportamento que não fosse aceitável. Muitas crianças estavam usando a grande rede, principalmente por intermédio dos sites de relacionamentos, para atacar colegas de forma pejorativa, outros, por falta de entendimento e experiência poderiam ser presas fáceis para espertalhões de todos os tipos. Era algo que estava acontecendo tanto em escolas públicas quanto em particulares como a de Ingrid e em todo o território nacional; a diretora queria apenas avisar e dessa forma manter os pais também no papel de vigilantes e guardiões de suas crianças. Não era o caso de Ingrid mesmo porque os pais dela já a mantinham sob rígida vigilância; sabiam dos perigos e armadilhas que o novo mundo digital podia esconder, sobretudo para os mais jovens.
Quando terminaram o Jantar, a menina correu rapidamente para o quarto, para frente do computador onde passava horas navegando na internet e conversando com coleguinhas de escola. Patrícia continuava mantendo rédea curta no controle e monitoramento da filha em ambiente virtual. Só permitia que ela usasse o computador depois de fazer todas as tarefas passadas pela professora como dever de casa e trabalhos extras; mesmo assim, a menina só podia ficar no computador durante um período estipulado de tempo, precisava dormir cedo para que pudesse aproveitar bem os benefícios de uma boa noite de sono. O período de uso do computador só era relaxado um pouco mais durante as férias escolares do meio e fim de ano ou em feriados prolongados.
Após o fim do jantar e de ajudar a prima a lavar devidamente todos os pratos, copos e utensílios usados, bem como limpar e organizar a cozinha. Mônica foi até a edícula onde estava hospedada, localizada no quintal atrás da casa. Era uma construção bem menor do que a casa da frente, mesmo assim, tinha bastante espaço para ela se sentir perfeitamente confortável e ter sua privacidade respeitada sem agredir a dos donos da casa.
Pretendia descansar um pouco já que Patrícia tinha levado alguns relatórios para analisar em casa após o jantar e precisaria de tempo para fazê-lo. Provavelmente fosse também repassar novamente as tarefas escolares com Ingrid antes de dormirem. O dia seguinte seria tão cheio quanto os outros e a prima também precisava de um momento de descanso.
A edícula era composta de um quarto, sala, banheiro, cozinha e um pequeno cômodo que poderia servir como guarda tralhas, escritório ou ateliê de pintura se Mônica pintasse alguma coisa, o que não acontecia.
Todo o lugar já estava previamente mobiliado quando ela se mudou para lá; Patrícia tinha tratado de colocar toda uma decoração independente na pequena casa dos fundos. Construíram o lugar justamente para o caso de ter de receber amigos mais chegados ou qualquer pessoa da família por um longo período de tempo. Tinham um ramo da parentela que morava em Portugal, mais precisamente na bela cidade do Porto,e se por ventura quisessem vir ao Rio de Janeiro, em qualquer época do ano, já poderiam ficar hospedados na edícula que era totalmente funcional, arejada e extremamente bem tratada. Enquanto não havia ninguém hospedado na edícula, os donos usavam como local de entretenimentos diversos, mas o lugar serviu muito bem para ajudar Mônica nesses meses que estava buscando um recomeço.
Ao entrar acendeu a luz da sala o mais rápido que pôde, as sombras dentro do cômodo incomodavam; fechou a porta e pensou por um minuto o que podia fazer para ocupar um pouco mais o tempo e relaxar antes de dormir. Pensou em ver televisão ou assistir um filme em DVD, havia uma coleção de filmes na estante; Heloi tinha colocado uma excelente aparelhagem de som e imagem digital de alta definição na sala da edícula; uma televisão LCD 42 polegadas, um Home Theater com DVD e quatro torres de som espalhadas nos quatro cantos da sala. Fez isso porque assim, toda vez que quisesse assistir filmes barulhentos de guerra ou com muita ação, tiroteios e explosões do jeito que gostava, não precisava ficar ouvindo as queixas de Patrícia por causa do barulho na casa principal. Isso sem falar no futebol, esporte pelo qual era apaixonado; assistia durante o ano inteiro a vários jogos do Campeonato Carioca, Brasileiro, Libertadores da América, Copa sul-americana, ligas italiana, inglesa e espanhola, UEFA e Liga dos Campeões da Europa. Tudo aquilo na paz e na tranqüilidade da edícula que agora era ocupada por Mônica.
Ela Trancou a porta e foi até a estante com a aparelhagem áudio visual, geralmente ela mesma passava muitas horas ali vendo telejornais, programas de variedades e eventualmente alguns filmes também, preferia as comédias românticas, mas não estava com muita vontade de assistir nada em especial naquela noite; mesmo assim se aproximou da prateleira com uma fila de discos de DVD, vários filmes, tanto produções de Hollywood como nacionais. Ela passou o dedo rapidamente como se fosse escolher algum deles, mas não achou que teria paciência para assistir até o fim e dessa forma o filme não ia ser útil para ajudar a criar um bom momento de relaxamento antes de se deitar. Uma coisa a estava incomodando intimamente e precisava pensar a respeito, principalmente para saber se revelaria à prima o principal fato que a fez abandonar o relacionamento antigo. Mônica precisava pensar seriamente sobre Fausto.
Foi para o quarto, tomou o cuidado de acender todas as luzes da casa e até mesmo alguns abajures localizados na sala já iluminada pela luz convencional e no quarto também, três ao todo, como se a grande quantidade de luzes pudesse de algum modo manter afastado dela qualquer pesadelo antigo que a estivesse querendo assediar durante a noite e madrugada ou impedir que sombras intensas fossem vistas nos cômodos.
Pegou uma camisa regata branca e um short curto de mesma cor, assim como uma toalha de banho bastante felpuda e seguiu para o banheiro. Logo que acendeu a luz e olhou para o espelho, um calafrio percorreu sua coluna como uma pontada fria. Não era uma sensação real, mas sim um fantasma de sensações que ela já tinha sentindo meses antes; apenas um pequeno filhote do medo que a fez fugir da vida e dos braços do “ex-amante”.
Lembrou-se de algo que ele costumava repetir várias vezes:
_Odeio espelhos._ murmurou repetindo a frase de Ricardo. Ela mesma não tinha nenhum problema em se olhar por longos minutos no espelho, mas a frase reapareceu em sua mente e ela apenas reproduziu.
Já estava morando na casa dos fundos há quase cinco meses e sempre que se deparava com espelhos, não somente aquele como também qualquer outro principalmente à noite, contanto que estivesse sozinha, lembrava dessa frase.
Após o banho revigorante e a troca das roupas que usou durante o dia pela camisa e short muito mais confortáveis, Mônica foi para o quarto e pulou sobre a cama cujo colchão era macio e maleável, retirou de uma pequena bolsa deixada ao lado da cama um pote de creme hidratante, um pente e um vidro de perfume.
Os primeiros pensamentos brotaram como água de uma fonte. Ela pensava que Ricardo não era um grande problema para sua nova vida nem para o que estava projetando para o futuro, sabia que ele ainda era apaixonado por ela, mas respeitaria a decisão que ela tomou de dar um fim na história que tentaram construir juntos. Muito provavelmente ele estivesse psicologicamente doente e precisasse de ajuda profissional, mas Mônica não se via com força suficiente para conseguir ajudá-lo contra a própria vontade dele que insistia em dizer que as vozes que ouvia eram um presente divino e não uma patologia mental. Ricardo ainda gostava dela, mas não queria abrir mão de seus delírios nem de suas manias de perseguição ele cria que alguma força superior o tinha escolhido para a realização de propósitos nobres. Além disso, havia outra coisa muito pior; havia uma terceira pessoa no relacionamento. Fausto.
Fausto sim representava uma ameaça muito maior do que o “ex-marido”; era possessivo, violento e totalmente imprevisível; provavelmente ainda não tinha assimilado o rompimento entre eles e devia estar procurando por ela como um louco e por todas as partes; felizmente, assim como Ricardo, Fausto também não sabia onde era a casa de Patrícia, portanto estava a salvo de ambos. Preferia não ter de encontrar qualquer um deles durante ao menos um ano, porém sabia que mais cedo ou mais tarde esse encontro ia acabar acontecendo. Ela esperava que o tempo fosse suficiente para amainar a paixão de Ricardo e o desejo ardente de Fausto.
Mônica abriu o pote de creme hidratante, despejou uma boa quantidade na palma da mão em concha, esfregou uma mão na outra e começou a massagear as pernas doloridas por causa de um dia inteiro de trabalho andando pra lá e pra cá usando salto alto. As mãos deslizavam desde o calcanhar até o início da coxa, pouco acima do joelho e em seguida voltavam para o tornozelo. Um aroma tênue semelhante ao perfume de talco inundou o quarto enquanto ela continuava a massagem gentilmente pelas pernas sem perder o foco de seus pensamentos.
Ela tinha certeza absoluta de que Fausto estava lá fora em algum lugar e que devia estar procurando por ela. O envolvimento deles foi rápido e intenso, no princípio ela não percebeu bem o grau de desejo que ele nutria por ela, não era amor, não era paixão; era desejo puro e carnal, mas conforme passou a se encontrar com ele algumas vezes, passou também a ver que a relação entre os dois seria muito mais física do que sentimental. Resolveu embarcar naquela aventura louca porque Ricardo era o contrário, sentimental demais e pouco viril, na verdade ele era um homem comum nessa área, mas Fausto era acima do normal; ele a satisfazia fisicamente de uma forma que Ricardo não era capaz de imaginar com seu comportamento metódico e convencional. Mônica passou a sentir o mesmo desejo violento por Fausto, e de certa forma se envergonhava disso, mas o que podia fazer? Com ele sentia-se adorada, venerada, enquanto que com Ricardo sentia-se apenas estimada, amada. Gostaria de ter os dois, mas como aparentemente não podia então tinha optado por ser adorada fisicamente em seu relacionamento estranho com Fausto. Às vezes ela se perguntava se aquilo foi um erro, mas nunca chegava a uma resposta sincera.
Ela tentou conversar com o “ex-marido” antes de se separar e falar sobre Fausto, mas não teve coragem; não sabia como ele ia reagir e teve medo que uma revelação como aquela pudesse agravar o estado psicológico dele que, segundo ela própria, já não era dos melhores com aquelas histórias de vozes ocultas todo o tempo.
Depois de algum tempo ela passou a não conseguir mais olhar o “marido” nos olhos sem pensar no outro e na volúpia de seus encontros, a casa lembrava Fausto, a cama, o banheiro, tudo lembrava ele. Quando fugiu, foi também de si mesma, tentando deixar longe de si aquele sentimento confuso de estar traindo outra pessoa, mais ou menos, por isso resolveu romper totalmente deixando Ricardo e o outro no passado. Se perguntava se realmente conseguiria.
Retirou mais um pouco de creme hidratante e começou a espalhar nos braços e ombros, as mãos delicadas, com unhas bem manicuradas e pintadas com temas florais, porém firmes, corriam de um lado a outro de uma forma quase profissional. Se Mônica desejasse poderia facilmente trabalhar como massoterapeuta, de fato, já tinha feito pequenos cursos a respeito e desenvolvera uma boa técnica.
Quando finalmente terminou a massagem já estava se sentindo fisicamente um pouco mais leve, porém mentalmente ainda havia muita coisa mal resolvida com sigo mesma. Gostaria de desabafar e resolveu que ia contar alguma coisa para Patrícia, mesmo que em doses homeopáticas no começo. Sabia que podia contar com a prima.
Foi até o banheiro onde lavou as mãos voltou para o quarto; pegou o telefone celular e discou os números do telefone celular de Leonardo. Após algumas chamadas a voz eletrônica de uma atendente automática surgiu com a clássica mensagem:
“O número discado está desligado ou fora da área de cobertura, sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagens e estará sujeita a cobrança após o sinal”.
Quando a voz eletrônica desapareceu, Mônica disse:
_ Léo, sou eu. Liga pra mim. Tchau._ Provavelmente o irmão estivesse em horário de trabalho naquele momento, mas como em outras oportunidades já tinha ligado para ele durante o turno e ele atendera, ela acostumou-se a fazer isso. Eles trocavam algumas palavras rápidas e em seguida desligavam. Mas não tinha problema, no dia seguinte ligaria para ele outra vez.
Desligou o telefone e colocou embaixo do travesseiro. Ficou deitada olhando o teto, as luzes de toda a casa ainda estavam acesas e ela só iria desligar quando o sono já estivesse quase vencendo sua resistência natural. As palavras Fausto, Ricardo, amor, adoração e várias outras ficaram girando e dançando na mente dela como se fossem pequenos fantasmas brincalhões esvoaçantes que trouxeram um sono sorrateiro que a dominou repentinamente.
Ela dormiu sem perceber, estava cansada pelo dia de trabalho e por toda a reflexão que tinha feito até aquele momento; nem foi capaz de se levantar para apagar as luzes como fazia costumeiramente. Dormiu pesadamente e sem saber que um grande mal estava cada minuto mais próximo.


(Ir para capítulo 6)

Comentários

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Postagens mais visitadas deste blog

Dica para escritores iniciantes: 7 Perguntas para criar seu personagem principal

A criação de um personagem principal exige atenção redobrada do escritor ao desenvolver sua trama, a ponto de muitas vezes um personagem ser capaz de segurar os leitores mesmo quando uma trama não é tão boa assim. Muitos autores acham que escrever um livro é simplesmente contar um relato em que um determinado personagem faz as coisas e pronto, mas isso não costuma funcionar e tem como resultado livros que não conseguem atingir seus leitores da forma correta. Escritores que pensam deste modo costuma apresentar em seus livros personagens sem muita profundidade ou carisma e isso é a fórmula para que seu livro fracasse. A magia de um livro bem escrito passa pela técnica da verossimilhança e no desenvolvimento de seu personagem principal, sobretudo, não é diferente. Mas o que seria isso, verossimilhança? Muito simples. Verossimilhança é a arte de tornar seu personagem o mais próximo possível da realidade a ponto de realidade e ficção se confundirem. Alguns autores famosos ou anônim

Escritores não estudam gramática. -- Dicas para escritores iniciantes

Na primeira vez que me deparei com esse conceito achei que não fazia sentido, mas a verdade, por mais estranho que possa parecer, é que grandes escritores não estudam gramática, eles se preocupam muito pouco em escrever perfeitamente ou de maneira erudita, respeitando e seguindo todas as regras gramaticais; isso acontece porque eles entendem que precisam usar seu tempo e energia para desenvolver algo que para eles é muito mais importante e relevante do que a gramática. E o que seria isso? A própria escrita.   Escritores estudam escrita . Professores e linguistas estudam a gramática; e por mais que exista uma proximidade entre eles, na medida em que ambos manuseiam as letras e as palavras de alguma forma, a arte do escritor não está em conhecer profundamente o seu idioma, mas sim em saber como usá-lo de maneira eficiente para contar uma história, quer seja de ficção ou não; que seja cativante e envolvente; ou transmitir informações caso escreva sobre temas técnicos. Escritores n

Serpente marinha

_O que poderia ser aquilo? As duas bolas incandescentes vinham em alta velocidade dentro da água do mar em direção ao navio, a fragata União, designada também pelo alfa numérico F-45. O alarme disparou momentos atrás por um dos sentinelas e chamou grande parte da tripulação ao convés, todos estavam muito aflitos para saber o que poderia ser aquelas duas bolas semelhantes a anéis de fogo navegando pouco abaixo da superfície d’água. Era noite e o navio seguia do Rio de Janeiro para Miami; estavam agora em águas caribenhas. Os sonares estavam captando algo que aumentava de tamanho conforme se aproximava, era uma coisa muito grande. Não parecia-se com nada que a tripulação experiente já tivesse visto em muitos anos de mar. A correria aumentou em todos os postos de combate, a sirene soou mais uma vez e anunciava posições de batalha, soldados foram alocados no convés do navio munidos de armas, outros começaram a preparar torpedos e minas de profundidade. Dois alertas foram emitidos;